Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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– «Vais bem?» – «Vou bem!» – respondo eu sorrindo
– «Vou indo bem! Muito obrigado, amigo.»
Dentro de mim, só para mim, comigo,
Meu vil sorriso é um silvo nunca findo...

Que pertinaz delírio em mim subindo
Me atrai além da recta que persigo?
Mas as mãos, que agitava, eu próprio as ligo,
Sufoco o estranho silvo... e cá vou indo.

Vou indo bem! Cá vou na recta via
Em que entrei, desistindo do delírio
Que me erguia estas mãos e mas torcia.

Deuses não sei de que longínquo empíreo!
Por esta recta, a quanto custo vim
E vou...! e aonde?: a vós? ao nada? a mim?...

«Apeadeiro».

Sim, foi por mim que gritei,
Declamei,
Atirei frases em volta,
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais, ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio:
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

José Régio, «Poema do silêncio».

Desenho de José Régio: «O poeta louco».

Tantos e tais caminhos se enredavam
– Ah, rede sobre o abismo! – ante os meus passos,
Que me deixei ficar bamboando os braços
E olhando os outros todos que avançavam...

E todos que avançavam me clamavam:
– «Anda connosco em busca dos Espaços!»
A todos eu olhava de olhos baços
E todos, rindo com desdém, passavam.

Que o meu caminho – o meu! – é que eu pedia.
E o meu caminho, ou eram todos eles,
Ou era, então, ficar parado e só.

Fiquei. Sou eu!, na encruzilhada... e um dia,
Tu, vento, que debalde hoje me impeles,
Por todos eles semearás meu pó!

«Universalidade».

José Régio, As Encruzilhadas de Deus.

Elle cherchait, d'un oeil troublé par la tempête,
De sa naïveté le ciel déjà lointain,
Ainsi qu'un voyageur qui retourne la tête
Vers les horizons bleus dépassés le matin.

De ses yeux amortis les paresseuses larmes,
L'air brisé, la stupeur, la morne volupté,
Ses bras vaincus, jetés comme de vaines armes,
Tout servait, tout parait sa fragile beauté.

Charles Baudelaire, «Femmes damnées».

Desenho de José Régio, «Femmes damnées».

Régio, para quem o corpo foi o pauliniano «corpo de morte», nele dramaticamente se detestou e amou. Toda a sua poesia é uma encenação dessa dupla «postulação», para lembrar Baudelaire, de quem Régio é, entre nós, a distante e a mais conforme «correspondência».

Eduardo Lourenço, O Canto do Signo.

Charles Baudelaire,
1821-1867.

Charles Baudelaire,
Les Fleurs du Ma
l.

Vers le Ciel, on son oeil voit un trône splendide,
Le Poète serein lève ses bras pieux,
Et les vastes éclairs de son esprit lucide
Lui dérobent l'aspect des peuples furieux:

– «Soyez béni, mon Dieu, qui donnez la souffrance
Comme un divin remède à nos impuretés
Et comme la meilleure et la plus pure essence
Qui prépare les forts aux saintes voluptés!

Je sais que vous gardez une place au Poète
Dans les rangs bienheureux des saintes Légions,
Et que vous l'invitez à l'eternelle fête
Des Trônes, des Vertus, des Dominations.

Je sais que la douleur est la noblesse unique
Où ne mordront jamais la terre et les enfers,
Et qu'il faut pour tresser ma couronne mystique
Imposer tous les temps et tous les univers.

Charles Baudelaire, «Bénediction».

É notório que certos ritmos ou esquemas versificatórios fazem lembrar os processos de versificação ou a temática afins da poesia lírica dos nossos Cancioneiros medievais ou da poesia popular.
[...] Régio, intencionalmente ou não, mostra que os recursos técnicos dessa velha maneira de poetar dos trovadores, ou da poesia popular, eram susceptíveis de novo tratamento ou arranjo [...].
A duas composições deu ele o título expresso de Cantar de Amigo, ainda que tecnicamente não apresentem o rigoroso esquema conhecido das cantigas de amigo trovadorescas. No conteúdo temático, porém, J. Régio aproveitou a sugestão dos poetas galaico-portugueses, pois que nessas composições é ela quem fala de ele e para ele, como nas medievais, e populares, cantigas de amigo.

Firmino Crespo, «Uma toada diferente nesta Música Ligeira».

Autógrafo de José Régio: «Cantar de Amigo».

José Régio, tão arguto crítico como excepcional poeta (e sem dúvida, pelo dramatismo psicológico e pela sonora eloquência da sua poesia, [é] o mais próximo de Camões, nos nossos dias).

Jacinto do Prado Coelho, A Letra e o Leitor.

Vai sendo lugar comum dizer de José Régio: é o mais clássico dos modernos; e os que assim falam ou escrevem pensam nos perfeitos sonetos de «Biografia» ou nas estrofes épicas de «Sarça Ardente». De facto ao lermos o pequeno poema que fecha «As Encruzilhadas de Deus» a sugestão clássica, ou melhor direi camoneana, é imediata.

Daniel Serrão, «José Régio copia Camões?».

Luís de Camões,
Os Lusíadas.

Eis-me..., tal qual!: Estreito mais que estreito,
De mim próprio cadáver e ataúde,
Beijocando e esmurrando o próprio peito
De olhos em alvo e os dedos no alaúde,
devedor apregoando o seu direito
E os seus vícios entoando por virtude,
Bicho da terra, vil, e tão pequeno
Que nem sequer aprende a ser terreno...
[…]
Assim falava, quando uma Figura
Ante mim se esboçou, se alevantava,
Que nos astros pousava a fronte pura,
Os pés na humilde terra que eu pisava.
Suas asas vibrando em la que altura
Faziam este vento que soprava...
E os seus abertos olhos mais que humanos
Eram grandes e fundos como oceanos.
[…]
E não mais, versos meus, palavras mortas,
Não mais!, que a voz se me enrouquece em vão.
Cale-me eu ao fragor, Senhor, das Portas
Do teu imenso Sim que não tem não!
Não mais eu te erga, em público, as mãos tortas,
Com reservas a doer no coração...
Não mais! E nos silêncios do meu verso,
Fala tu!, Voz Suprema do Universo.

José Régio, «Sarça ardent».

Sempre gostei de ler e fazer sonetos. Julgo, demais, o soneto uma forma em que, desde Sá de Miranda, os portugueses sobressaem. A Biografia é simplesmente a colecção dos meus sonetos. Se alguma ideia lhe presidiu, foi, talvez, a de sintetizar, em sonetos, toda a minha produção poética. Não quer isto dizer que Antero – poeta excepcionalíssimo numa boa dúzia de sonetos – me não possa ter influenciado.

José Régio entrevistado por Joaquim Correia.

Antero de Quental,
1842-1891.

Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém

Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Florbela Espanca, «Minha culpa».

Florbela Espanca, 1894-1930.

Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém

Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...
Florbela Espanca, «Minha culpa».

Sei que este meu aspecto dúbio, fez-mo
A vida em que o meu Ser supremo e belo
E os meus gestos indómitos não cabem.

Sei que sou a paródia de mim mesmo.
Sei tudo... E para quê?, porquê sabê-lo?
Viver é entrar no rol dos que o não sabem!

José Régio, «Struggle for life».

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© Instituto Camões, 2007