Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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Alta comédia misteriosa, a Vida
Era um bem digno dom de altos senhores.
Nós é que somos tão banais actores
Que a comédia decorre incompreendida.

Vivendo à superfície, e de fugida
Entre a plateia, o palco, os bastidores,
Mimamos o sorriso, o riso, as dores
Duma Vida maior nunca atingida.

«Síntese»
.

All the world's a stage
And all the men and women are merely players

William Shakespeare, As you Iike.

O teatro de José Régio [...] funde três linhas nele destacáveis [...]: o alegorismo poético do post-simbolismo [...], o realismo-naturalismo […] e o experimentalismo das formas expressionistas [...]. Com efeito, se Jacob e o Anjo continua a linha de António Patrício, Três Máscaras prolonga o diálogo de Pierrot e Arlequim de Almada Negreiros, como Benilde reflecte o expressionismo e a superação do realismo efectuada por Alfredo Cortez e por Raul Brandão.

Jorge de Sena, «Algumas notas sobre o teatro de José Régio».

Sim, bem sei que o tablado em que figuro
Longe está bem de mim léguas e léguas.
Minhas pupilas viam longe... e eu cego-as;
Mas sei que finjo achar o que procuro.

Sei que o meu sonho é imenso e anseia ar puro,
Mas, no meu gabinete, o meço a réguas.
Sei que devo aguardar, velar sem tréguas,
Mas busco o sono e embrulho-me no escuro.

«Struggle for life».

José de Almada Negreiros, Pierrot e Arlequim.

Snr. Milhões, de pé, altivo e transfigurado.
Eu sou o doido! Eu sou a morte!

Governador Civil
Anh?!

Snr. Milhões
Estou farto! Estou farto de me vestir todos os dias, de cumprimentar todos os dias, de dizer todos os dias que sim! Estou farto de sorrir e de fazer as mesmas coisas inúteis, que não condizem com a minha situação respeitável no universo.
[…]

Governador Civil
Mas que tenho eu com isso?

Snr. Milhões
Vais morrer, e vais morrer porque com as tuas fórmulas, a tua papelada e o teu burlesco, és também abjecto e inútil. O cavador existe! O soldado existe! O herói existe! Tu não existes!

Governador Civil
Eu não existo?!

Raul Brandão, O Doido e a Morte.

Gesticular, compor, dizer, fingir,
Socorros mútuos de fazer caretas...
Falam solenemente, e andam sem
Neste bar de lunetas e muletas.

Nas plateias vazias e quietas,
Quem, tão livre e tão só, para assistir?
Gentes servis a quem se dá gorjetas
Nem sequer se atreviam a tossir.

Quem me arrancou pelos cabelos?...
Louco Filósofo, ou Demónio, ou Anjo, quando
Me iluminaste os olhos, às lançadas?

Voei do palco, e assisto ao drama oco.
De Cá me voo lá representando,
E encho, eu sozinho, as frisas e as bancadas!

«Fugiu um doido!».

Cena da representação de Três Máscaras.
Raul Brandão, Volume de Teatro.

Toda a obra dramática de José Régio parece ter uma ligação estreita com as tensões do grande teatro pirandelliano, em particular Três Peças em Um Acto, onde o parecer e o ser constituem o primeiro núcleo da dramaturgia da personagem que se exprime através duma alquimia verbal destinada a legitimar as razões do sentimento com as razões da lógica.

Manuel Simões, «O duplo obscuro, ou seja, a tensão entre o ser e o parecer no teatro de José Régio».

Luiggi Pirandello, 1867-1936.
Luiggi Pirandello, Um, Ninguém e Cem Mil.

A presença do texto literário na filmografia de Manoel de Oliveira pode ser considerada como o seu suporte estrutural. [...] O convívio com José Régio estimulou este aspecto da sua personalidade criadora, e esteve na origem de um sempre renovado processo de busca de assuntos, no alfobre inesgotável da literatura portuguesa e estrangeira. Os seus admiráveis, densos e cuidados longos planos, ditos parados, consentâneos com a dimensão dos textos debitados são tão dinamicamente reveladores de profundezas interiores como de infindáveis horizontes simbólicos.

João Francisco Marques, «Manoel de Oliveira: a sedução do texto literário».

José Régio com Manoel de Oliveira e Lopes Fernandes, na casa de Portalegre.

O Meu Caso é, justamente, O Meu Caso, o dele Régio, o teu, o meu o nosso caso. O de cada um de nós e o de nós todos. Do mundo e do seu futuro, do nosso futuro. Do nosso devir. De todas as coisas e de coisa nenhuma em particular. Do «Tudo. Nada».

O Meu Caso é uma peça de teatro em um acto, escrita nos anos cinquenta por José Régio [...] e foi o meu ponto de partida para a construção de o-meu-caso-filme que envolve para além de outras coisas, outros textos, como um de Samuel Beckett e o do «Livro de Job», do Velho Testamento.

Manoel de Oliveira, «O Meu Caso no caso de Régio».

A Morte pode, com efeito, significar uma ignorância integral, um «nada, nada se sabe»... Não, porém, com José Régio [...] é no El-Rei Sebastião que ela reveste as características de autêntica imortalidade, que ela se transforma numa espécie de «vocação». [...] Na dureza implacável de uma tal apoteose, haverá alguma coisa da alegria nietzscheana de Zaratustra, alguma coisa do «salto sobre o abismo»? Decerto um pouco do tumulto de Wagner se exibe neste delírio; porém, é o rosto de Parsifal que nele sobretudo se espelha, de Parsifal que achou o Graal perdido mas se esqueceu do seu nome.

Orlando de Carvalho, «El-rei Sebastião. Poema espectacular de José Régio».

Cena do filme de Manoel de Oliveira, O Quinto Império, inspirado em El-Rei Sebastião.

Em Jacob e o Anjo, José Régio foi buscar à tragédia do nosso Rei D. Afonso VI, impotente e mentecapto, a ossatura exterior da peça mas retirando-lhe todo e qualquer nexo com a História através da inespacialidade e intemporalidade que lhe confere. [...] Na mitologia de Régio, e nisto é ele bem irmão de Dostoievski – o sofrimento e a derrota podem ser instrumentos de progresso moral. Na medida em que se despe do que em si é mesquinho, na medida em que perde, ou, mais tendenciosamente, na medida em que algo de si morre – é que o indivíduo ascende a um outro grau de vida, a do Espírito.

Eugénio Lisboa, «Morte e Ressurreição na obra de José Régio».

Autógrafo de José Régio: «Jacob e o Anjo».

Altíssima e originalíssima criação, o Bobo, com as suas asas-barbatanas, as mesmas do Anjo [...] e o afanoso tautear do rei. [...]

Pensa-se logo em outro dramaturgo português: o solitário, glorioso Gil Vicente. Mas este tinha atrás de si a Idade Média; José Régio tem o nosso mundo de desnorteados e de descontentes que não conseguem encontrar um átomo de paz.
Vicenzo Spineli, «Segundo encontro com José Régio»..

Vicenzo Spineli, «Segundo encontro com José Régio».

Gravura da representação de uma peça de Gil Vicente.
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© Instituto Camões, 2007