Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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Trombetas, anafis, clarins, timbales,
Também eu quis que o mundo mos ouvisse
Tocar; e essa banal, vã garridice
Feriu ecos por montes e por vales.

«Vésperas»

Também José Régio usa processos semelhantes aos que Proust descreve, recorrendo muitas vezes à memória para criar as suas ficções, reconstituindo ambientes, personagens, sentimentos e emoções que experimentou e lhe ficaram na lembrança desde os tempos da infância e juventude. É o caso da obra romanesca A Velha Casa, baseada, em muitos aspectos, no seu meio familiar e na qual estão ficcionados vários elementos da família.

Isabel Cadete Novais, Jacob e o Anjo: a Construção do Texto Dramático em José Régio.

O que de todos esperara, há quanto
Que todos, um por um, mo sonegaram!
Meus lábios sem razão os verberaram,
Saiba-me a boca, embora, a amargo e a espanto.

Pois que lhes dava eu, pedindo tanto?
A mim próprio, que dei? Sons que esvoaçaram...
A vida não perdoa aos que a frustraram!
E a vida me atirou para o meu canto.

«Estrela da tarde».

José Régio, Capas dos cinco volumes de A Velha Casa.

Quando li o 4.º volume de A Velha Casa logo me senti seduzido pela possibilidade de uma transposição para o cinema.
A visão cinematográfica que tive e conservo ainda daquela obra apareceu-me — sem ignorar as dificuldades e a responsabilidade de uma tão grande tarefa — como uma revelação de tal modo forte que nunca mais me abandonou a ideia de realizar um dia este filme.

Manoel de Oliveira, «Projecto para a realização do filme
A Velha Casa — As Monstruosidades Vulgares».

Uma aragem de Além passou nos ares,
Betou-me a fronte... e logo vi quem era.
Demoraste! e eu nem sei como esquecera
Que há muito que são horas de chegares.

«Visitação da tarde».

Certa recordação lhe ficou dessa época; — uma dessas recordações simultaneamente queridas e pungentes que, nunca mais esquecidas, gravadas fundo, para sempre tornam vivos quaisquer pormenores de há muitos anos. […] Tempo, tempo houvera em que também para ele, assim como para Maria Clara e Angelina, era aquele um dia desejado! Sempre, entre os que vinham à festa, havia uns amigos ou vagas primas de Vila do Conde que jantavam lá em casa. Por esse tempo, a casa transbordava de vida! Fazia-se arroz doce ou creme queimado. [...] Quando o creme era despejado nas grandes travessas inglesas de louça branca, rapavam o tacho de cobre, que mui de propósito Piedade deixava mal rapado.

José Régio, As Monstruosidades Vulgares.

Inútil tentar mais!, que não me resta
Mais do que o vício, solitário e agudo,
De tentar por tentar, e achar em tudo
O azedo a cinza após a febre e a festa.

Só Tu me podes restituir a mim,
Revelar um Princípio no meu fim,
Compenetrar de Ser a morte e o nada.

«Logro».

Desenho de José Régio: «Angelina».

Et tout d'un coup le souvenir m'est apparu. Ce gont c'était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l'heure de la messe), quand j'allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m'offrait après l'avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. La vue de la petite madeleine ne m'avait rien rappelé avant que je n'y eusse gonté; peut-être parce que, en ayant souvent aperçu depuis, sans en manger, sur les tablettes des pâtissiers, leur image avait quitté ces jours de Combray pour se lier à d'autres plus rècents.

Marcel Proust, Du Côté de Chez Swann.

Marcel Proust, À Ia Recherche du Temps Perdu.

[...] Gosto muito daquele longo, minucioso e múltiplo convívio que nos permitem os romances extensos à Balzac, à George Eliot, à Tolstoi [...]. Os personagens de tais romances tornam-se-nos tão reais como os nossos parentes, amigos ou inimigos; e ler torna-se-nos conviver com outra gente, viver outras aventuras, ter outras profissões, morar em outras casas, visitar outras cidades, etc.)

Carta de José Régio para Miller Guerra, de 8 de Outubro de 1936.»

George Eliot, 1819-1880.

Diz-me um rapaz de Lisboa que o José Gomes Ferreira dizia de A Velha Casa: «Mas aquilo é Os Thibault...».
A leitura de L'été 1914 faz-me suspeitar de certas coincidências devidas a circunstâncias: História duma família, proximidade das épocas, interesse pelos problemas sociais, composição de romance cíclico... Mas que cegueira, — não ver que o Martin du Gard e eu estamos em pólos opostos, somos personalidades literárias inconciliáveis! [...] Não mais escreveria eu uma linha n'A Velha Casa, se acreditasse [...] que a minha obra não é senão uma réplica portuguesa, em menor, daquela penosa construção sem qualquer fagulha de génio...

José Régio, Páginas do Diário Íntimo.

R. Martin du Gard, Les Thibault.

Não é só a fecundidade na criação de figuras o que surpreende na arte de José Régio. É também a riqueza de pormenores significativos de profundo conhecimento do ambiente provinciano, seus preconceitos, sua maledicência mesquinha, sua negação dos preceitos morais. Se por vezes esta obra [Davam Grandes Passeios...] parece reproduzir o aspecto idílico de Júlio Dinis, outras vezes lembra o realismo das Novelas do Minho de Camilo Castelo Branco.

Álvaro Ribeiro, A Literatura de José Régio.

José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos...

O imenso apaziguamento do crepúsculo entrava pela janela aberta. Os olhos de Rosa Maria perdiam-se por esses olivais verde--cinza, esses montados, campos, hortas, que desciam, curveteavam, se espraiavam aqui e além semeados dum casinhoto branco, e depois subiam, escurecidos de arvoredo, e se iam perder nas ondas lilazes das serras longínquas, nos aguados e finíssimos azuis da névoa [...] regressava, depois, à linha remota do horizonte; e com esses esbatidos fumos da distância e essas opalinas liquescências do céu se misturava o seu sonho.
[…]
D. Cecilia Fortes sorria superior e condescendentemente da maledicência da outra. No fundo, estava saboreando. […] Continuou, puxando a conversa sobre o Chico:
— Eles dizem que tem p'r'aí uma mulher com um filho; e parece que não quer deixá-la! Era menor, foi ele o primeiro, sempre tem responsabilidades...
— Ora, ora! Responsabilidades! A senhora parece que não anda neste mundo. Bem se importam eles com responsabilidades! Então aquele!... São todas as que lá andam na apanha da azeitona, ou na chacina..., e que ele quer. Menor! Dá-lhe aí dois ou três contos..., já toda a família embucha; e ela arranja outro pai para o filho.

José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos...

Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as duas primas sentadas ao parapeito do muro da quinta, donde, por sobre almargens e pomares vizinhos, a vista se espraiava em amplíssimo horizonte até umas nuvens, que pareciam limitá-lo. […]
A natureza estava sereníssima. No ocidente desenhavam-se estreitos e longos traços nebulosos, a que o Sol dava um colorido tão ardente, que, se um pintor paisagista o produzisse na paleta, hesitaria, ao passá-lo à tela, com receio de que o acoimassem de exagerado. O verde dos campos apresentava a gradação vigorosa que a luz de um formoso dia de Inverno costuma dar-lhe.

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais.

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais.

Como quer que fosse, o abade entrou-se de medo bem entendido, quando Irene lhe pediu que a protegesse e resgatasse da escravidão em que vivia.
[...] Não obstante, indagava com cautela o modo de libertar Irene pelo divórcio, ou pela fuga para mosteiro ou casa de família honesta. As famílias honestas recusavam-se a receber a esposa difamada pelo marido; as menos honestas esquivavam-se a desavenças com Álvaro de Abreu, respeitando mais os hóspedes que o hospedeiro. Os donos das casas endinheiradas dormiam tranquilamente, enquanto o amigo do José do Telhado e José Pequeno lhes não retirasse a sua estima.

Camilo Castelo-Branco, «Gracejos que matam».

Camilo Castelo Branco, Novelas do Minho.
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© Instituto Camões, 2007