Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Início 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11

Por caminhos só rectos, não sei ir.
Nos ínvios por que vou, não sei ficar.
Suspenso do passado e do porvir,
Venho e vou, venho e vou!, não sei parar.

«Libelo».

Ora José Régio não só não ignorava, como admirava certos artistas representativos do «expressionismo» ou aparentados ao seu espírito, como o próprio Ibsen, que tanto influenciou o seu teatro, ou Grosz, de quem cita a «Fealdade Alemã», sem falar de Goya e dos seus «Caprichos», exemplos de expressionismo intemporal.

Eduardo Lourenço, A Nau de Ícaro.

Chegou a hora de cansar..., cansei!
Sabei que as chagas todas que aureolei
São rosas de papel como as das feiras.

Que eu vivo a expor minh'alma nas estradas,
Com chagas inventadas retocadas...
Para esconder bem fundo as verdadeiras

«Demasiado humano».

Henrick Ibsen, 1828-1906.
José Régio, Através duma peça de Ibsen [O Pato Bravo].

Contínua tentativa fracassando,
Minha vida é uma série de atitudes.
Minhas rugas mais fundas que taludes,
Quantas máscaras, já, vos fui colando?

Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes
(– E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...)

Encontrar-me? iludir-me? ai que o não sei!
Sei mas é ter no rosto ensanguentado
O rol de quantas máscaras usei...

Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado!

«Baile de máscaras»

Geoorge Grosz, 1893-1959.
Desenho de Francisco de Goya: «Caprichos» n.º 41.

Romance-tese, que em certas páginas aflora mesmo o puro tom ensaístico, [...] meditação filosófica, livro de memórias incoerentes e brumosas, poema em prosa ou anti-romance, tudo isso o Húmus é e nada disso apenas é. [...] Não deixaremos de encontrar vestígios seus em obras tão diferentes como as de alguns autores da «Presença», principalmente em José Régio.

José Manuel de Vasconcelos, Húmus de Raul Brandão: algumas notas de leitura».

Raul Brandão, Húmus.

O Jogo da Cabra Cega pode ser lido como um romance expressionista. Lembra pelo seu modo tenso ou estridente de representação o traço de Júlio, pintor irmão de Régio [...]. Expressionismo que pode ser lido também como um Raul Brandão sintonizado em registos de alta voltagem metafísica. Registos de que serão aqui exemplos o confessional do inconfessável, o religioso transgressivo, o patético negro e burlesco.

Fernando Cabral Martins, O Trabalho das Imagens.

José Régio, Jogo da Cabra Cega.

Régio percorre neste romance, como Sá-Carneiro nas suas novelas, todo o ciclo que vai da fascinação por um objecto de desejo à exercida pelo mediador que o estimula, à identificação com este último, e finalmente ao narcisismo, ou interiorização do mediador amado; com derivantes como a do transfert de um mediador para outro, e manifestações especificamente freudianas de complexo de Édipo.

Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio.

Por este reconhecimento da função do subconsciente na minha produção literária – me encontrei mais tarde com Freud e o admirei; e continuo a admirar como um daqueles génios que realmente impelem os homens a avançar mais um passo no conhecimento do homem. Ouso afirmar que ainda antes de o conhecer (pois as principais passagens do Jogo da Cabra Cega estavam escritas bem antes de ser o romance publicado) de certo modo me antecipei a tal conhecimento no Jogo da Cabra Cega.

José Régio, Confissão dum Homem Religioso.

Óleo de Júlio: «Rapariga e flores».

Régio sonha com a unidade máxima – através do Bem ou mesmo do Mal – e opostamente luta contra a dualidade trágica de quem «se exibe duplo, intolerável, só». Por influência, decerto, de Dostoievski, Jaime Franco ecoa um Stavroguine: e na autobiografia dele escrita por Pedro Serra [...] repercute a célebre «Confissão» desta célebre personagem de Os Possessos. (Como aliás, é dos Possessos (Primeira Parte, Cap. IV, 5, diálogo de Chatov com Maria) que vem a ideia de Benilde: «O que me causa mais admiração – diz Maria – é que tive um filho sem conhecer nenhum homem.»)

Virgílio Ferreira, «Na morte de Régio».

Fiador Dostoievski, Les Possédés.

Après sa naissance, [...] j'ai dit une prière au-dessus de lui et je Pai emporté non baptisé à travers une forêt. J'ai eu pear dans les bois, et ce qui m'épouvante le plus, ce qui me fait surtout pleurer, c'est que j'ai eu un enfant sons connaitre d'homme.
– Mais peut-être que tu as été mariée? hasarda Chatoff.
– Tu m'amuses, Chatouchka, avec ta supposition. Peut-être bien qu'en effet j'ai eu un mari, mais qu'importe, si c'est exactement comme si je n'en avais pas eu? Tiens, voilà une énigme qui n'est pas difficile, devine-la! répondit-elle en riant.

Fiodor Dostoievski, Les Possédés.

Com Claudel, confrontou Régio o seu lirismo, e essencialmente o seu misticismo, depois projectadosessencialmente em Benilde ou a Virgem Mãe; mas, ao contrário de Claudel, Régio não assume em absoluto o misticismo e a confessionalidade relativamente à personagem principal, antes deixa, [...] a dúvida acerca dessa confessionalidade, espelho dos seus próprios conflitos interiores, no que respeita à religião cristã.

Ana Maria Abreu, O Teatro de José Régio.
Contributo para o Seu Estudo
.

Desenho de José Régio: «Benilde».

BENILDE
(com esforço mas serenamente, os braços caídos)

Vou... dizem que vou ter um filho. (Breve silêncio.) Ainda não sei bem corno se tem um filho. Sei que é preciso amar um homem, pertencer-lhe... Por isso gostaria de vir a ter filhos teus, Eduardo. Nunca amei homem nenhum senão a meu pai e a ti. [...] Mas acredito que vou ter um filho, porque sinto há uns tempos coisas que não sentia, e porque desde sempre Deus me distinguiu com visões e outras graças. É mais um mistério do seu amor e da sua vontade...

José Régio, Benilde ou a Virgem-Mãe.

Três características de Claudel me atraem: o seu poderoso lirismo; o seu misticismo; simultaneamente, um fundo senso das coisas da terra. Creio que há afinidades entre nós – humanas... não artísticas – e profundas diferenças. Houve quem falasse em L'Annonce faite á Marie a propósito da Benilde ou A Virgem Mãe. Não há influência nenhuma de aquela peça nesta, e quaisquer aparências de encontro ou semelhança não passam de aparências.»

Carta de José Régio para Maria Aliete Galhoz, de 3 de Agosto de 1968.

Início 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11

© Instituto Camões, 2007