Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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O encanto e o brilho do exercício, aos poucos
Se me foram perdendo, e, nota a nota,
Na abissal placidez da noite imota
Meu canto emurcheceu pelos céus ocos...

Cada vez mais os sons me vinham roucos
Ao longo da sinuosa e cruel rota!
Já, gota a gota, o sangue se me esgota,
E, derredor, só mudos, cegos, moucos...

«Capelas imperfeitas».

«A arte ainda é o meu meio de confissão mais próprio; de confissão e de libertação.» Grande artista que era, Régio confessava-se sobretudo através da «mentira» da Arte e das suas máscaras: a confissão em directo perturbava-o, inibia-o de dizer tudo ou mesmo quase tudo. Por isso o seu diário, documento invulgar e notável, foi escrito tão irregularmente e nunca publicado; por isso a sua Confissão dum Homem Religioso se foi arrastando, em projecto, durante tantos anos, e ficou não só impublicada em vida do Autor, mas incompleta, ainda que poderosa e perturbante na sua incompletude.

Eugénio Lisboa, «Revelação e mistério: o «Diário» de José Régio».

O gosto de confessar-se em memórias, romances, poesia, é de tradição romântica (Garrett exemplifica-o entre nós), mas recebera novos estímulos quando Régio inicia a sua carreira [...] O acto de confissão individual liga-se ainda com o romantismo social ou naturalista da miséria por uma relação que bem se explicita em Dostoïevski e, teoricamente, em Chestov: o ir até ao fundo daquilo que é humanamente negativo, do mal, da abjecção, das mentiras vitais (fórmula de Ibsen, outro mestre de Régio), seria a melhor, senão a única, via até Deus.

Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio.

Como falar, sequer, em dor, em dores,
Agora, que do peito em que inda bato
Só ergo o pó das ruínas interiores...?

«As duas idades».

José Régio, Confissão dum Homem Religioso.

Cerrado o circo e ausente a multidão,
— Bateu a hora, e a máscara desceu —
Mostra-te, enfim, qual és, velho histrião!
Que ninguém mais nos vê: só tu e eu.

E vê que porque assim no meu espelho
Te vês qual és, trôpego, abjecto, velho,
E eu, no teu, frio, altivo, triste e forte,

Nos vamos ambos tendo em cena, até
Que a mim me fuja a vista, e a ti o pé,
E aos dois nos varra um-só a mão da morte.

«Metapsíquica».

Quase toda a obra de José Régio é [.. .] uma confissão interminável, patética, eloquente, sonora, gesticulante, esfomeada de compreensão e cortada de perplexidades e ironias calcinantes. Apesar do seu «métier», nela é sobretudo o homem e não o literato que, ao primeiro e mesmo ao segundo contacto, se nos impõe.

Eugénio Lisboa, José Régio — a Obra e o Homem.

Talvez Régio não esteja tão longe dos escritores europeus que ao longo do século XX viveram um cristianismo trágico, cheio de conflitos, incertezas e profundas dúvidas: desde Mauriac a T.S. Eliot, passando por Bernanos, Graham Green ou Damaso Alonso. [...] Podemos dizer que Régio é um «homo religiosus», orientado essencialmente para o Absoluto, como Antero de Quental ou como o brasileiro João Guimarães Rosa. [...] Talvez poderíamos dizer que Régio, enredado em encruzilhadas de dúvida, está a meio caminho entre Torga, que se mantém na sua recusa, e Nemésio, que se decide pela opção religiosa católica. Se calhar o jovem Régio dos primeiros livros de poesia está mais perto de Torga, enquanto que o Régio maduro da Confissão aproximava-se da linha nemesiana, quiçá mais do que ele próprio supunha.

Eduardo Alonso Romo, «José Régio visto por ele próprio».

Tanto mais duvidamos quanto mais sabemos, ou julgamos saber. E sobre nós mesmos, homens, se torna ainda maior a nossa perplexidade! [...] Decerto há mais mundos que os já descobertos, conhecidos, sonhados! Porém o nosso espírito recua, o nosso entendimento vacila e teme, em se aventurando um passo no labirinto das esferas, nas sombras dos nossos próprios subterrâneos...

José Régio, «Os três vingadores ou nova história de Roberto do Diabo».

Jose Régio, Há Mais Mundos. (contos).

Todos nós criamos o mundo à nossa medida [...] E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice […]. Plasmado finalmente em prosa – crónica, romance, memorial, testamento –, [...] Homem de palavras, testemunhei com elas a imagem demorada de uma tenaz paciente e dolorosa construção reflexiva feita com o material candente da própria vida.

Miguel Torga, A Criação do Mundo.

Miguel Torga, A Criação do Mundo.
Miguel Torga, 1907-1995.
Vitorino Nemésio, Diário.
Vitorino Nemésio, 1901-1978.

Sou, organicamente, um delicado. É talvez por isso que tenho versos brutais, e que me deixo subjugar pela brutalidade de certos temperamentos. Quando falo, ou quando escrevo, não sei que fatalidade irónica me obriga a galgar para o modo de ser oposto ao meu. Ou talvez que em mim existam os dois modos. Sou uma vítima de contrastes.

José Régio, Páginas do Diário Íntimo, 20 de Outubro de 1923.»

Eu escrevi um volume [Jogo da Cabra Cega] de perto de quatrocentas páginas sobre o tema inédito da amizade entre homens complicados. O tempo fará justiça a esse livro excepcional, talvez cheio de defeitos, mas também cheio de originalidade, ousadia e riqueza psicológica.

José Régio, Páginas do Diário Íntimo, 15 de Janeiro de 1937.

José Régio, Páginas do Diário Íntimo.

Combien je me sens empêché sans cesse par la spmpathie. Sentir sans cesse que ma pet sée peut et doit meurttir ceux que j'aime. Ceux qui vont de l'avant san crainte de blesser autrui, je les admire et les envie. Les oeuvres pacifiques ne sont pas mon fait. Je ne me sens moi-même et valeureux qu'en état de lutte.

André Gide, Journal, 30 de Novembro de 1931.

Comme j'irais bien, sons tous ces geras qui me crient que je vais mal!
Ils s'obstinent à voir dans Les Faux-Monnayeurs un livre manqué. On disait la même chose de l’Éducation Sentimentale de Flaubert, et des Possédés de Dostoïevski.
Avant vingt ans l'on reconnaïtra que ce que l'on reproche à mon livre, ce sont précise¬ment ses qualités. J'en ai la certitude.

André Gide, Journal, 5 de Março de 1927.

André Gide, Journal.

Nascida de um ser frágil, o artista, a obra acaba por sustentá-lo em vez de sustentar-se dele. Acaba por fazê-lo, em vez de fazer-se nele. Acaba também por fazer-nos um pouco a todos nós.

Eugénio Lisboa, José Régio – a Obra e o Homem.

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