Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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Pela curva infindável e poeirenta
Da velha muito velha, estrada, passa,
Bamboleando a grávida carcaça,
Uma corroça antiga e sonolenta.

Sustenta bobos e aleijões... Sustenta
A vontade de rir da populaça.
E um jovem clown azul contra a vidraça,
Paira, sonhando ao som da roda lenta...

Sonha incógnitas luas e evasões
Dum lado e de outro do caminho, chovem
Pétalas murchas como os quadradinhos

«A terra é redonda».

Acabo de ler, por inteiro, e num só hausto feliz, o seu livro «Biografia», há meia hora recebido.
É um livro admirável, porém a sua leitura, para em seu efeito ser mais admirável, faz-me saudades. Faz-me saudades do maior amigo meu, do único grande amigo que tive – o Mário de Sá-Carneiro, a quem a leitura dos seus sonetos entusiasmaria como uma boa nova. Sonhei sem querer – em um daqueles sonhos retrospectivos e erróneos — que estivéssemos lendo juntos os seus sonetos, e reconheço a voz dele e a minha no consenso entusiástico da apreciação.
Explico. Há uma íntima analogia entre o seu modo de sentir e o modo de sentir que distinguia o Sá-Carneiro.
O modo de sentir [...] é que é diferente, como convém a dois que são dois, e não comummente o terceiro que não é ninguém.
Estes semi-dizeres não chegam a ser palavras: são contudo a expressão imediata, espontânea e inteira com que, orgulhando-se misteriosamente de v., o abraça o amigo e muito admirador.

Carta de Fernando Pessoa para José Régio, de 17 de Janeiro de 1930.

José Régio, Biografia (sonetos),
1.ª edição com capa de Júlio.

Surgiu no palco, um dia, um bailarino,
Surgiu soberbamente nu, – jogando
Nas mãos ágeis de clown e de menino
Cem máscaras rodando, rodopiando...

Sobre um décor violento e sibilino
Cegamente bailou, tombou bailando,
Como se mais não fora seu destino
Que o seu bailado altivo e miserando.

No palco jaz agora um mutilado:
Jaz morto e nu, decapitado, olhado
Por milhões de olhos sem pudor nem vista.

...Que as máscaras sem fim que ele jogara
Não eram mais, talvez que a própria cara
Dum desgraçado e humano ilusionista!

«Boneco desfeito».

Pintura de Luís Badosa: «Fernando Pessoa».

Quero bem ao meu livro, se ele assim lhe evocou Sá-Carneiro. Creio bem que entre Sá-Carneiro e eu haja afinidades – pois eu, mais que o admiro, o amo. E algumas das suas páginas, julgo compreendê-las com aquela cegueira ou lucidez de quem se compreende a si próprio. Entre ele e eu há talvez, além de outras diferenças!, a de ele ser mais Artista (e quanto mais inovador!) e eu, ai de mim! mais humano... isto é: duma humanidade mais geral, que ainda é uma das razões do meu drama, por estar em conflito com o muito que há em mim de particular. Releve-me, querido amigo, o estar a falar de mim, e o ter o ar de me estar a comparar com Sá-Carneiro.

Carta de José Régio para Fernando Pessoa, de 24 de Janeiro de 1930.

Autógrafo de José Régio:
Três Peças em um Acto
.
Desenho de José de Almada Negreiros: «Mário de Sá-Carneiro».

Outubro, 2.

O mais doloroso é que ele não sabe que me absorveu porque não me admirava.
Se me admirasse, seria eu quem o absorveria.

Outubro, 6.

Quero fugir, quero fugir!...
Haverá tortura maior?
Existo, e não sou eu!...
Eu próprio sou outro... Sou o outro... O Outro!....

Outubro, 8.

Para onde ele vai, vou eu também. Mas eu nunca sei para onde ele vai...
Os seus espasmos são os meus. Mas só ele possui. Os seus ideais são os meus. Mas só ele os não realiza. Como libertar-me?...

Mário de Sá-Carneiro, Eu-próprio o Outro.

O conto-poema Eu Próprio o Outro tem por título um oxímoro, que Régio há-de aproveitar, tornando-o emblemático, na sua peça sobre Sá-Carneiro, Mário ou Eu Próprio – o Outro.

Fernando Cabral Martins, O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro.

O OUTRO
És incorrigível. Diz lá.

MÁRIO
compõe-se um pouco, toma certo ar, declama após uma breve pausa:

«Quando eu morrer, batam em latas,
«Rompam aos saltos e aos pinotes,
«Façam estalar no ar chicotes,
«Chamem palhaços e acrobatas!

«Que o meu caixão vá sobre um burro
«Ajaezado à andaluza...
«A um morto nada se recusa,
«E eu quero por força ir de burro!»

(ligeira pausa. Inesperadamente, dobra-se todo numa gargalhada mais longa que as precedentes, bate palmas enquanto ri. Quando acaba de rir, volta-se para o Outro).

Que dizes? gostaste? que dizes aos últimos desejos do Esfinge Gorda?

José Régio, Mário ou Eu-Próprio – o Outro.

Desenho de José Régio: «Palhaço».
Óleo de Júlio: «Músico».

Senhores!»
– Grita o palhaço da entrada,
Todo listrado de cores –
«Entrai, que não custa nada!
«À saída é que se paga...»
(E eu sou aquele palhaço
Com listras!, e estardalhaço,
Chamando público...)

José Régio, «Amén».

Desenho de José de Almada Negreiros: «Arlequim».
Desenho de José Régio: «Pierrot»

Charlot! O seu ar lamentável, o seu bigodinho à americana, o seu andar salta-pocinhas, as sias pernas flectindo nas rótulas, os seus pés desviados – ganharam-lhe um nome de Guerra. Charlot dá para tudo.
[...] Mas os poetas verão em Charlot uma fantasia originalíssima, um fato branco de pierrot sentimental; os romancistas um íntimo conhecimento dos homens, um agudíssimo poder de observação; e os críticos um senso cómico dos mais amplos, a par duma intuição genial dos meios irónicos, paradoxais, transpostos, [...]. Mas Charlot não é nenhuma destas imagens: porque Charlot é outro, é o que simultaneamente está a ser visto de modo diverso por todas as lunetas. Esse – é inimitável e solitário. E como tem o gosto de usar muitas máscaras a ver se esconde a sua verdadeira cara, ou antes: a ver se revela as muitas caras da sua cara, eu só posso tentar defini-lo, digo: sugeri-lo dependurando aqui os seus dominós mais repetidos...

José Régio, «Charlie Chaplin».

Charlie Chaplin, «Charlot».

Ora no espelho em frente, uma caricatura,
Um rosto cego, mudo, escanhoado,
empoado,
Garante-me que sou aquela compostura,
Esse sepulcro caiado...

José Régio, «Jogo de espelhos».

José Régio em Coimbra, com auto-retrato ao fundo.
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© Instituto Camões, 2007