Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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Pela noite, esse Grito alevantou-se
Dos mais escusos longes do meu ser,
E eu compreendi que do teu seio o trouxe,
Mãe!, e que me era urgente obedecer.

Mandava não sei quê... — fosse o que fosse!
Frio e mudo me ergui todo a tremer...
E o silêncio da noite alvoroçou-se
De vozes que eu ouvi sem compreender.

«Vocação».

Régio leu, releu, deixou-se seduzir e admirou Eça de Queirós. Não é certo — é mesmo muito duvidoso — que tenha chegado a amá-lo, como amou Camilo, o seu Camilo, artista tão diverso do autor de O Primo Basílio, tão mais imperfeito, de certo ponto de vista, mas, segundo Régio, seguramente mais genial, ainda que menos talentoso...

Eugénio Lisboa, No Eça Nem com uma Flor se Toca.

Quando pela primeira vez li Eça de Queirós, já estava enfronhado em Camilo. A minha primeira reacção foi, pois, de estranheza, antipatia, desagrado. O novo grande romancista português que principiava a conhecer — parecia-me frio e distante. A bem dizer, cruel, duma crueldade sem nervo. Acostumado a conversar com o meu Camilo, debalde queria, pois não podia, apaixonar-me contra, ou a favor dos seus personagens. Por sua vez me pareciam estes inacessíveis ou fechados, — porque não dizer vazios? Todas estas dificuldades se me avolumavam por não ter eu, então, senão escassa capacidade a reconhecer as grandes virtudes com que o Eça as compensa.
Algumas vezes, ao longo da vida, o meu juízo próprio sobre o grande escritor tem variado, e a minha admiração por ele sofrido altas e baixas.

José Régio, «Apontamentos sobre Eça de Queirós».

Edição de «Obras de Camilo».

Quando, pois até doce a vida trava,
Se eu batia nos peitos, algum dia,
Davam eco..., — era um eco! e bem se ouvia
Que nos peitos alheios ecoava.

Do pranto juvenil que me inundava,
Como o orvalhado olhar resplandecia!
Modulava-se o grito em melodia,
Cada queixa era um poema que vibrava.

«As duas idades».

Eça de Queirós, 1845-1900.

Necessidade de expressão, expansão, comunicação, me fizera escrever, dos doze para os treze anos, o primeiro caderno de versos; e uns três anos mais tarde, os primeiros capítulos do primeiro romance. Como eram de amor e melancolia, os versinhos chamavam-se... Violetas.
[...] O ambicioso poema seguinte já se chamava Legião. Estava penetrado de António Nobre — doentia paixão da minha adolescência, [...] — embora tivesse um rótulo pouco assimilável ao do seu grande livro. Talvez por ciúme desse belo título — Só — houvesse eu, em parte, escolhido o de Legião, inspirado em certo passo dos Evangelhos.

José Régio, «Introdução a uma obra».

António Nobre, .
José Régio, autógrafo do poema «Legião».

A Prima doidinha por montes andava,
À lua, em vigília!
Olhai-me, Doutores! há doidos, há lava,
Na minha família...

      
Quando eu choro, choras comigo
      Meu velho Cão! és meu amigo...
      Tu nunca me hás-de abandonar.

E os anos correram e os anos cresceram,
Com eles cresci:
Os sonhos que tinha, meus sonhos... morreram,
Só eu não morri...

António Nobre, «António».

António Nobre, 1867-1900.

[...] Minha mãe, como já disse, era capaz de destrambelhar se a paixão ou os movimentos do sub-consciente a alteravam. [...] Talvez as forças do obscuro ou nocturno sobre ela — não ficassem por aí. [...] Havia lava na sua família.

               
A prima doidinha por montes andava
               À lua, em vigília.
               Olhai-me, doutores! há doidos, há lava
               Na minha família.

Eu lia e relia na cama os versos de António Nobre, que chegavam a provocar-me o desejo de estar doente como ele: «o desejo absurdo de sofrer, li pouco depois no Cesário, — único poeta que pude ler sem desgosto enquanto ainda permanecia sob a quase exclusiva fascinação do outro. Já não sei se foi logo à primeira leitura do que particularmente me impressionou aquela quadra do belíssimo poema António. A minha «prima doidinha», — a prima Teresa — creio que ainda por esse tempo tinha «o seu juizinho todo», para empregar uma expressão popular.

José Régio, Confissão dum Homem Religioso.

E rota, pequenina, azafamada
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

[…]

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com uni enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

Cesário Verde, «Num bairro moderno».

Cesário Verde, 1855-1886.
Livro de Cesário Verde.

Todos os dias, de manhã, passando
Na sua rua, a encontro já erguida,
Sem estender a mão, mas esmolando,
No xalinho sem cor quase sumida.

Tem dez..., quinze..., vinte anos? Ninguém sabe.
Seu corpito parou... ficou assim.
Mas nos seus olhos, que cresceram, cabe
Todo o oceano azul dos céus sem fim.

«— Deus lhe pague!» — diz-me ela, em paga dessa
Envergonhada esmola que lhe dou.
E o seu olhar, que nada há que meça,
Já me pagou! já me pagou...

José Régio, «Esmolas».

José Régio, 16 Poemas dos não incluídos em Colheita da Tarde.
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