Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
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O arcanjo de asas pandas de granito
Poisa um dedo no lábio concentrado;
Mantém-se hierático e de pé, gelado;
E o seu olhar de pedra é alheio e fito.

Não lhe perguntes, pois, pelo finito
Corpo que jaz, sob seus pés, velado.
Isso é carne corrupta, é um pó guardado
Num caixão corruptível e restrito...

Ele, o que amou, sonhou, cantou, sofreu,
E em cujo próprio desespero ri
Um rastro de mais mundos e mais céu,

Foi isso e muito mais! – não cabe aqui.
Se podes crer que enfim se desprendeu,
Encontrá-lo-ás em tudo... e até em ti.

«Epitáfio do Poeta».

A compreensão e a aceitação da obra de José Régio estão sujeitas, como todas as grandes obras, aos múltiplos equívocos que implica a tentativa para exprimir o inexprimível. [...] Tendo sido o mais admirado poeta depois de Pessoa, mas mal senão totalmente incompreendido como ficcionista e dramaturgo, irritando quase todos pela sua crítica à qual um ideal ingénuo de objectividade o tornava incómodo a gregos e troianos – a obra de José Régio terá que esperar, segundo creio, muito tempo, pelos seus verdadeiros leitores.

Adolfo Casais Monteiro, «Sobre a obra de José Régio».

José Régio com Adolfo Casais Monteiro, em Coimbra.

Não convivi com José Régio. No entanto, os antagonismos de geração [...], e talvez ainda as disparidades temperamentais, em nada impediram que, desde cedo, eu me tivesse alistado entre os seus leitores fiéis. Decorei-lhe poemas e poemas, em que os desesperos e as duplicidades da condição humana me pareciam sublimados num confessionalismo exorcizador e contagiante [...].
Revisitei assiduamente os seus romances e novelas, percorrendo-lhe as clareiras e os labirintos [...]. Exaltei-me com as fábulas e as dualidades farsa-tragédia, rei-bobo, desnudez-máscara das suas imprecações dramáticas.

Fernando Namora, «Um homem de Portalegre».

Fernando Namora, 1919-1989.

Foi em 1942 que me vieram às mãos, pela primeira vez, versos seus – o «Fado»; depois li as «Encruzilhadas» e todos os outros seus livros até ao «Príncipe com orelhas de burro» – e os seus livros foram para o pé de aqueles que me são mais queridos. Passei a contar aos seus versos os meus desgostos ou as minhas alegrias, com a mesma sinceridade com que eles me contam os seus; e como também fazia meu poemazito, parece que muito fui aprendendo consigo.

Carta de Sebastião da Gama para José Régio,
de 7 de Fevereiro de 1946.

José Régio com Sebastião da Gama, em Portalegre.

Ler José Régio Poeta é encontrar uma força de querer um ideal que se desdobra e aprofunda em variados caminhos dentro de uma unidade sem quebras. Folheando agora mansamente as suas páginas encontro aquele ser humano que tive o bem único de pessoalmente conhecer […] com o reconhecimento do muito que lhe fiquei devendo por ter podido aproximar-me da sua força de viver.

Matilde Rosa Araújo, «José Régio e a Mulher
em Histórias de Mulheres».

Matilde Rosa Araújo, 1921-.

Quando fiz dezasseis anos e vivia em Lourenço Marques, um amigo e colega de liceu ofereceu-me, como presente de aniversário, o primeiro volume de A Velha Casa, aparecido pouco antes. Li Uma Gota de Sangue com verdadeira paixão. No ano seguinte, já a viver em Lisboa, fiz vergonhas para adquirir o segundo volume – acabado de sair –, As Raízes do Futuro. A paixão não foi, desta vez, menor. Poucas obras de ficção, na literatura portuguesa, me têm sido tão importantes, pelo que dizem e pelo modo como o dizem.

Eugénio Lisboa, «Uma Velha Casa em Azurara».

Eugénio Lisboa, 1930-.

[…] Apenas posso dizer o que, não somente como leitor mas também como escritor, José Régio representou para mim. Com ele pensei pela primeira vez na especificidade, na autonomia da literatura. Isto no plano teórico, porque no plano da realização artística os Poemas de Deus e do Diabo e As Encruzilhadas de Deus logo se me apresentaram como dois dos mais belos livros de poesia da língua portuguesa. Sem esquecer Jogo da Cabra Cega que, pelo menos hoje, já não posso considerar um grande romance mas que foi para mim uma extraordinária revelação. Nunca tinha lido um romance assim e, escusado será dizer, escrevi imediatamente algumas histórias a imitá-lo. Imitá-lo fez parte da minha aprendizagem.

Augusto Abelaira. Resposta ao Inquérito, pelos 30 anos da morte de José Régio.»

Augusto Abelaira,
1926-2003.

Foi [...] em Angola e Moçambique que a influência de Régio se fez sentir mais profunda e duradouramente. A tal ponto que, ainda hoje, tantos anos já passados, alguns dos seus poetas não lhe podem negar a raiz, apesar de outras ideias, outras estéticas e influências terem surgido e insinuado novos caminhos, desde a «presença» para cá.
Bastará citar os dois maiores poetas de Angola e Moçambique, que são também dois grandes poetas portugueses — Alda Lara e Reinaldo Ferreira – para verificarmos como essa presença é merecida e inconfundível. [...]
Quem ler a sua poesia (e o mesmo poderá encontrar também noutros nomes – Lacerda, Knopfli, etc.) aí deparará Régio muitas vezes presente, não numa recreação servil ou imitativa, mas (e isso é uma característica dos grandes poetas) num clima de espiritualidade poética afim e idêntica vivência.

Orlando de Albuquerque, «José Régio e os poetas do Ultramar Português».

Que é do anjo das asas rutilantes
Com que lutou Jacob, na madrugada?
Que é desse outro, de falas sussurrantes,
Que surgiu a Maria, a fecunda,
[…]
Não os vejo e não sei se eu, que os procuro,
Os não encontro porque sou impuro,
Ou sou impuro porque os não vejo.

Reinaldo Ferreira, "Visitação".

Reinaldo Ferreira,
1922-1959.

Foi talvez Armando Cortes Rodrigues quem, decerto espantado com a ignorância poética de quem já lera autores em prosa de estofo como Proust, Gide, e outros, me emprestou o primeiro livro de poeta que me caiu nas mãos: os Poemas de Deus e do Diabo, de José Régio. O impacto foi tremendo; abandonei ali as ambições em prosa para todo o sempre. Os horizontes abriram-se para o significado e o valor da poesia, aquela primeira leitura germinou em vocação que até aí se escondera adormecida algures serenamente.
Escrevi o primeiro poema; um poema que, com a escassa bagagem de que dispunha, não poderia ser senão o que foi: uma afirmação de independência na raiz do célebre verso «Sei que não vou por aí».

Egito Gonçalves, «À memória de José Régio».

Egito Gonçalves,
1920-2001.

C. Reis — Poesia que o levou a escrever poesia...
J. Saramago – Nessa altura, nos anos sessenta, o José Régio publicou o Filho do Homem. Tive então uma experiência de ordem sentimental, ocorrida em sessenta e dois, sessenta e três, à volta disso [...]. E portanto, houve, de facto, uma coincidência entre a leitura do Filho do Homem e esse episódio da minha vida, coincidência que me levou a escrever poesia.

Carlos Reis, Diálogos com José Saramago.»

Carlos Reis com José Saramago.

Cecília Meireles [...] inscreve no seu livro Mar Absoluto e Outros Poemas a seguinte dedicatória: «A José Régio, essa veemente voz da poesia do mundo, com estima». A tónica é posta pois na veemência, na força interior que atravessava o verbo de Régio, autor que ela entendia fazer parte da poesia do mundo, do universo da escrita maior que era o seu timbre. Para quem conhece a obra de Cecília Meireles, toda ela percorrida de atenção ao absoluto, percebe o que lhe subjaz e de que matéria é feito esse olhar e essa admiração.

Nicolau Saião, «Régio e os escritores brasileiros».

Cecília Meirelles,
1901-1964.

Foi com quase indizível emoção que ouvi recentemente a grande Maria Betânia declamar num seu espectáculo ao vivo esse genial grito individualista que é o «Cântico Negro» (incluído aliás, num disco gravado pelo também talentoso actor brasileiro Paulo Gracindo) o que tudo tem o significado bem gratificante de que José Régio já não é grande só entre nós.

Ernesto de Oliveira, «José Régio – um homem atento e raro».

Cecília Meirelles,
1901-1964.

«Adeus!, adeus! cá vou, que vim com pressa...
Venci! que, nesta baixa actualidade,
Minha Hora passou... mas já começa.»

Essa hora que «já começa», ou melhor, re-começa será o tempo da re-construção e da re-escrita das suas obras, feitas pelos leitores, quer eles sejam filólogos, críticos, ou simplesmente fruidores da escrita de Régio.

Isabel Cadete Novais, Jacob e o Anjo: a Construção do Texto Dramático em José Régio.

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© Instituto Camões, 2007