Vivina Almeida Carreira de Campos Figueiredo
Doutoranda em Estudos de Tradução, Professora da ESAC, Instituto Politécnico de Coimbra
Introdução
Há um conjunto de valores gerais que são partilhados por uma comunidade relativamente ao que é certo ou errado, adequado ou inadequado que se materializam em comportamentos ou desempenhos em determinadas situações específicas. Gideon Toury sustenta nesta ideia a sua teoria da tradução e designa estes valores por ‘normas’.
A tradução é uma actividade que envolve no mínimo dois sistemas linguísticos o sistema linguístico original e o sistema linguístico importador e dois sistemas culturais, ou seja, dois sistemas de normas em cada pólo. No caso da tradução literária acresce ainda o sistema semiótico literário e os seus códigos específicos. No processo de tradução, todas as decisões são regidas por essas normas que o tradutor materializa através das opções que toma.
A reconstituição das normas subjacentes a qualquer tradução faz-se estudando e analisando traduções autênticas e identificando aí padrões regulares de tradução (estas são as fontes textuais, na terminologia de Toury) ou estudando e analisando quaisquer formulações semi-teóricas ou críticas como ‘teorias’ normativas de tradução, testemunhos de tradutores, de editores ou de quaisquer outras pessoas envolvidas ou ligadas à actividade (as chamadas fontes extratextuais). (Toury, 1995: 65)
As normas que aqui nos interessa tentar reconstituir são as preliminares, isto é, aquelas que decidem a estratégia tradutória geral e a escolha dos textos a serem traduzidos. E as fontes a que preferencialmente recorremos são extratextuais, nomeadamente, os paratextos no sentido mencionado por Genette (1982: 10), i. e., títulos, subtítulos, epígrafes, dedicatórias, prólogos, prefácios, posfácios, advertências, notas prévias, nome de autor e de tradutor, (ou a ausência de um ou de outro ou de ambos) capas, contracapas, frontispícios, introduções, notas editoriais, informações nas badanas, notas de rodapé, notas à margem, ilustrações, notas do tradutor, notas finais, apêndices, anexos, publicidade, informações bibliográficas e legais, ou quaisquer outros sinais que mantêm qualquer relação com o texto que acompanham fisicamente.
As funções de todos estes paratextos são variáveis, mas todos são mediadores entre o texto e o leitor e podem potencialmente influenciar a leitura e a recepção do texto.
Tipologia e Funções dos paratextos
O tipo de paratextos que mais interessa, neste caso, são aqueles textos, normalmente na forma de prefácios ou notas prévias que são susceptíveis de esclarecer os leitores sobre o que quer que diga respeito ao texto enquanto texto traduzido. Para além desses, são também de referir o título e o nome do autor, a publicitaçao de outros livros do mesmo editor, na contracapa ou nas páginas finais, os resumos na contracapa ou nas badanas, as ilustrações na capa, na contracapa e, por vezes, dentro do próprio texto. Obviamente, com excepção do primeiro, todos os outros podem coexistir, podendo deter também múltiplas funções, sendo que em alguns casos, alguma delas se destacará como dominante.
O que a seguir se propõe é uma breve passagem de olhos pelas traduções portuguesas das obras de James Joyce e os seus paratextos e ver que tipo de informações eles nos proporcionam.
Dubliners (Londres, 1914)
Dubliners foi a primeira obra de Joyce a aparecer em Português europeu, mas não com uma tradução integral. A primeira aparição de Dubliners em Português de Portugal data de 1946 (trinta e dois anos após a publicação do texto original, mas apenas cinco anos após a morte do autor). Trata-se de uma antologia intitulada Os Melhores Contos de James Joyce, com selecção e tradução de Maria da Paz Ferreira e prefácio de João Gaspar Simões. A editora Editorial Hélio assume claramente tratar-se de uma antologia: pelo título, pela colecção em que aparece, denominada “Antologia”, e por uma breve nota no verso da página do índice, em que se lê o seguinte: «Os contos da presente antologia foram extraídos do volume “Dubliners”».
Na badana esquerda informa-se de que «A Colecção “Antologia” publica, regularmente, as obras primas da novela e do conto» e dá-se informação dos volumes saídos anteriormente.
A encimar estas informações há uma declaração surpreendente que afirma o seguinte: «Todos os seus volumes são escrupulosamente seleccionados e traduzidos sem mutilações.» A surpresa desta declaração vai-se revelando cada vez mais flagrantemente à medida que se avança na leitura dos contos. Mas fixemo-nos por alguns instantes na questão da antologia.
A exclusão é uma marca da natureza das antologias; elas são construídas a partir de partes e, por isso, o seu carácter fragmentário não nos deve causar estranheza. O que já podemos questionar é a legitimidade de se fazer uma edição antológica de uma obra que se apresenta como um todo.
Dubliners é constituída por quinze contos. Estas histórias passam-se no pano de fundo da cidade labiríntica de Dublin, no virar do século, e os temas recorrentes são a revolta, a morte tomada em vários sentidos e, sobretudo, a paralisia no sentido figurado de incapacidade para agir. A sua disposição sequencial foi pré-definida pelo seu autor, pelo que a ordem por que aparecem não é de todo indiferente para a significação global do macrotexto. Este macrotexto organiza-se numa estrutura orgânica e circular para o que é essencial a localização estratégica de alguns contos, como por exemplo, o primeiro e o último.
O conto de abertura “The Sisters” é, pela sua localização estratégica, essencial para a significação global da obra. Digamos que este conto dá ao leitor uma antevisão do resto da obra.
Portanto, para além da exclusão antológica, a ordenação arbitrária dos outros contos, significou uma interferência na estrutura organizativa do macrotexto original com consequências ao nível da significação global da obra.
Sobre a exclusão nada é dito nem a ela se refere o prefaciador nas vinte páginas que antecedem os contos. Contudo, pelos temas contidos nos contos excluídos “The Sisters”, “An Encounter”, “Two Gallants”, “Ivy Day in the Committee Room” e “A Mother” parece legítimo pensar-se que terão sido razões de auto-censura que terão ditado essa exclusão: sexo, religião e política era melhor deixar de lado.
Além do mais, contrariamente ao que é dito, trata-se ainda de uma tradução bastante mutilada. A obra aparece com uma capa de aspecto muito sóbrio e, como já foi referido, com um paratexto de pendor simultaneamente informativo e publicitário nas badanas.
O paratexto mais importante é o prefácio da autoria de João Gaspar Simões intitulado “James Joyce e a sua obra”. Aí faz-se a apresentação do autor num breve esboço bio-bibliográfico e das técnicas narrativas inovadoras que o celebrizaram, nomeadamente o monólogo interior ou corrente de consciência. Conta-se também a história das dificuldades que Joyce sofreu às mãos da censura para publicar as suas obras e de como essas circunstâncias lhe aproveitaram em fama. O conteúdo deste prefácio deixa adivinhar que a obra visava um público de letras, especializado. Ou se dirigia a um público académico ou aos potenciais jovens escritores. No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, não é de estranhar que João Gaspar Simões, ele próprio um dinamizador das letras e da cultura, estivesse a pensar nos potenciais jovens criadores que muito tinham a aprender com James Joyce.
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A primeira tradução integral de Dubliners em Português europeu data de 1963 (trata-se da data do Depósito Legal, quase meio século após a publicação do original) e foi executada por Virgínia Motta e publicada pela editora Livros do Brasil, na Colecção “Dois Mundos”, sob o título de Gente de Dublim. A capa é um paratexto muito sóbrio, como é, aliás, apanágio desta editora, e nas badanas encontram-se duas sinopses, uma relativa à obra em questão e outra relativa a O Inverno do Nosso Descontentamento, de John Steinbeck. Na contracapa encontra-se um paratexto informativo dos títulos publicados na Colecção “Dois Mundos”. Não a acompanha nenhum prefácio e a tradução mantém os quinze contos que constituem o macrotexto original e mantém também a ordem original por que aparecem. As frequentes reedições desta tradução são indicativas de ser esta a tradução canónica.
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Em 1985, aparece, pela editora Vega, na Colecção “Contemporâneos de Sempre”, uma outra tradução, sob o título de Gente de Dublin, subscrita por B. de Carvalho. Desta obra se pode dizer que é, no mínimo, estranha. O primeiro motivo de estranheza prende-se logo com a capa com desenhos coloridos: duas figuras femininas loiras e uma masculina, junto de um automóvel no pano de fundo de uma cidade à noite uma plástica que remete para as capas dos romances que conhecemos sob a designação de “literatura cor-de-rosa”. O outro motivo de estranheza é a espessura num formato pequeno conta apenas 160 páginas. Aberta a obra, percebe-se imediatamente porquê: cinco dos quinze contos desapareceram e, quando se inicia a leitura, percebe-se também que muitas frases foram omitidas. Além disso, foi trocada a ordem das histórias, perdendo-se com isso a coerência textual já aludida e desvirtuando-se o significado global pretendido pela organização original do macrotexto. Tudo isto acontece sem nenhuma espécie de aviso ou explicação ou notícia de se tratar de uma edição abreviada. Mas quando lidos com mais atenção, estes textos mutilados revelam-se exactamente os mesmos textos da antologia organizada por Maria da Paz Ferreira e prefaciada por João Gaspar Simões em 1946, apenas com duas importantes diferenças: a obra não se assume como antologia ou versão incompleta e apresenta um novo tradutor. Na verdade, B. de Carvalho apenas se deu ao trabalho de fazer alguma actualização ortográfica.
A contracapa contém um breve comentário sobre o conteúdo da obra e uma elogiosa referência ao seu autor.
Na segunda página há um paratexto informativo sobre outros títulos publicados na Colecção “Contemporâneos de Sempre” e na página que antecede o frontispício, ironicamente, lê-se: «Sem autorização expressa do editor, não é permitida a reprodução parcial ou total desta obra desde que tal reprodução não decorra das finalidades específicas da divulgação e da crítica.»
Em 1994, a Editores Reunidos Lda. e a RBA Editores SA voltam a editar esta obra, mantendo o copyright da editora Vega e ela é distribuída com o jornal Público na série “Clássicos do Público”. A capa é extremamente sóbria ao contrário da anterior. Estas obras, vendidas em conjunto com os jornais por um preço simbólico, têm a óbvia vantagem de chegar a um público leitor mais vasto. Mas foi uma obra mutilada e tipograficamente menos cuidada que chegou às mãos desses leitores.
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Em 1994, as Publicações Europa-América apresentam outra tradução da obra completa, executada por Isabel Veríssimo, editada na Colecção “Grandes Clássicos do Século XX” destinada a grande circulação. A capa apresenta com grande sobriedade a reprodução de uma gravura representando a Dublim da época e a contracapa apresenta uma breve sinopse da obra e um apontamento biográfico do seu autor. No interior do livro cada título aparece dentro de um círculo pontilhado e decorado com discretos traços. No final, encontra-se um paratexto comercial, publicitário aludindo a várias obras e, num caso, apresentando imagens do filme adaptado da obra publicitada, apelando nitidamente à compra dos livros procedimentos muito comuns nesta editora.
A Portrait of the Artist As a Young Man (Nova Iorque, 1916)
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Esta foi a primeira a ser traduzida integralmente em Portugal, sob o título de Retrato do Artista Quando Jovem. Foi traduzida e prefaciada por Alfredo Margarido e publicada pela editora Livros do Brasil na sua Colecção “Dois Mundos”. Não tem data, mas aparentemente é de 1960, atendendo ao que o tradutor afirma no prefácio à tradução revista publicada pela Difel em 1989.
A capa, muito sóbria, contém apenas o título, o nome do autor, da colecção e da editora. A contracapa apresenta o elenco das obras publicadas na Colecção “Dois Mundos”. A badana esquerda contém uma sinopse da obra e a direita uma sinopse de As Verdes Colinas de África, de Ernest Hemingway.
O tradutor um escritor ousado e cultor de vários géneros, desde a poesia ao romance e ao ensaio faz preceder a obra de um breve prefácio de cinco páginas. Mas este prefácio não lhe serve a função de explanar e/ou justificar as suas opções tradutórias. A esse aspecto, Alfredo Margarido apenas reserva um lacónico parágrafo final e destacado na mancha gráfica, onde afirma o seguinte:
Resta acrescentar que o tradutor se viu obrigado a tomar algumas liberdades no seu trabalho, de modo a poder dar uma correspondência portuguesa tão aproximada quanto possível do original. Liberdades que devem ser consideradas como inevitáveis sempre que haja necessidade de traduzir James Joyce para qualquer língua que não seja a sua própria, que muitas vezes deixou de ser o inglês para se transformar numa língua de uso estritamente particular. (Joyce, 1960: 9)
Podemos inferir que outras e mais prementes intenções motivaram este prefácio: tratando-se da primeira tradução integral de uma obra de Joyce em Portugal, afigurou-se-lhe necessário apresentar Joyce ao leitor português e familiarizá-lo com uma nova estética literária. Começando por dizer que Joyce é um “iniciador de caminhos”, avança ele próprio também alguns caminhos de leitura, alertando o leitor para temas, técnicas narrativas, recursos literários e artifícios linguísticos que caracterizam a escrita de Joyce, que não só a desta obra em particular. Fazendo-se aqui referência expressa a outras obras do autor, fica claro que a intenção foi a de apresentar, não apenas uma tradução, mas um novo escritor, um clássico firmado e prestigiado. A 2ª edição desta obra só sai em 1992.
Entretanto, em 1989, tendo a Livros do Brasil deixado esgotar a obra, o tradutor republicou-a na editora Difel, na Colecção “Literatura Estrangeira”, em edição revista e com o prefácio substancialmente aumentado “quase trinta anos depois” (Joyce, 1989: 10). As reflexões aqui colhidas dizem respeito a alguns problemas de difícil solução tradutória, a algumas alterações introduzidas nesta edição bem como à necessidade de aumentar as notas de rodapé por parecerem «indispensáveis, a partir do momento em que convinha dar a compreender a importância da reflexão histórica que percorre este romance de ponta a ponta.» (Joyce, 1989: 14).
Em 1993, aparece outra tradução, executada por Clarisse Tavares destinada à colecção “Livros de Bolso” das Publicações Europa-América.
*Versão abreviada de um trabalho apresentado no "III Encontro Internacional de Tradutores", realizado em Fortaleza, de 30 de Agosto a 3 de Setembro de 2004.
(Continuação em próximos números)
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