Mariana Ploae-Hanganu
(Universidade de Bucareste)


Sobre a tradução como modelo de todo e qualquer processo de significação escreveu-se muito. Nunca plenamente aclarado, sempre aberto a novas interpretações, o processo de tradução continua ainda a suscitar reflexões. Uma vez, numa reunião internacional, Jorge Luís Borges resumia, no seu modo poético, toda a complexidade do fenómeno, dizendo que toda a tradução tem que obedecer a uma “misteriosa alquimia”: para lá da equivalência das palavras, será preciso escutar a voz profunda do autor e tentar captá-la, o que, na visão do autor citado, corresponderia a um verdadeiro milagre, um milagre – que a nosso ver – pode ser sustentado pela motivação. O tradutor deve sentir-se, de algum modo atraído ou pela forma, ou pelo conteúdo do texto original, ou pelo autor, ou pelo momento e o lugar a que se refere o texto original. Manuel Bandeira afirmava, neste sentido, que ele só traduzia bem os poemas que gostaria de ter escrito. Contudo, não devemos ver num tradutor apenas um poeta frustrado. Há na tradução um processo muito mais complexo e, quando Borges falou num milagre, não foi por não poder interpretar o fenómeno, mas, pelo contrário, fê-lo penetrando na sua profundidade, aclarou-se-lhe o seu lado misterioso que pode tornar de novo, recriando uma obra pela qual, sem saber porquê, o tradutor se sentiu de qualquer forma atraído.

Eu também vivi uma experiência deste género. Et in Arcadia ego!

Além de tudo o que sou, o que fiz e o que me foi reconhecido na minha profissão, gosto que a gente me chame a tradutora da obra de Miguel Torga para o romeno, porque esta tradução como acontecimento, trabalho, revelação, criação e tudo o resto que implicou, foi a coisa mais importante da minha vida. E é isto que tomo a liberdade de lhes contar.

Recém-licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Bucareste, chegava na década de 70 a Lisboa para aprender português, não pelo fulgor do idioma, de que pouco sabia, nem pelo esplendor do passado histórico, sobre o qual tinha lido umas coisas, mas prosaicamente pelas necessidades do ensino desta língua no nosso país. Além disso, levava comigo, na bagagem das boas intenções, o desejo de recolher e ler a maior quantidade possível de bibliografia sobre fonética e fonologia portuguesas para um futuro manual destinado aos alunos romenos, assim como a curiosidade de descobrir o crioulo de base portuguesa, de que gostava e cujo estudo sonhava aprofundar numa futura tese de doutoramento, Ambiciosa e incrível meta conjugada toda no tempo futuro! O presente era composto pelas aulas na Faculdade, por encontros diversos, visitas de estudo para descobrir ao vivo a arte e a vida portuguesas, tudo numa esplêndida Primavera lusitana. Num desses encontros, conheci, na casa dos pais duma amiga portuguesa, Miguel Torga. Na altura, eu era aluna da Faculdade de Letras de Lisboa e foi o curso de literatura de David Mourão-Ferreira, com os seus comentários elogiosos sobre o valor literário da obra de Torga, que despertou o meu interesse pelos seus textos. De resto, pouco sabia sobre o poeta, menos ainda sobre o homem. O encontro foi deslumbrante. Estava na minha frente um homem como se fosse de granito, não pela imponência da estatura, mas pelos traços do rosto, pela cor dos olhos penetrantes, pela profundidade do olhar. O pai da minha amiga portuguesa, médico também e colega de estudos de Miguel Torga, apresentou-me como uma grande amante de poesia. Mas as palavras não me saíam da boca. Estava completamente muda: uma mistura de medo e admiração reduzia-me ao silêncio. Ouvi então a sua voz, que reparei ser suave mas contundente, dizendo: “Fale, estamos sob a protecção da poesia”.

De regresso a casa li e reli, pouco a pouco, toda a sua obra: certos versos permaneceram comigo desde o primeiro dia em que os li e assim, em dez anos, acabei por saber de cor versos e versos que passaram a fazer parte da minha memória intelectual e afectiva.

Entretanto, saiu do prelo, da minha autoria, um manual de fonologia da língua portuguesa para os alunos da nossa universidade, defendi uma tese de doutoramento sobre o crioulo de base portuguesa de África e continuei a ensinar português, falando sobre as caravelas portuguesas, que espalharam pelos quatro continentes o idioma mais melodioso de todas as línguas românicas, ou falando sobre Miguel Torga. Num inocente egoísmo, guardava só para mim a alegria que oferece a beleza dos seus versos, a clareza do seu pensamento, a definitiva e empática expressão do quotidiano, a profundidade dos sentimentos… Até que um dia, descobri que nas minhas palavras estava parafraseando Torga e, mais do que isso, que quase involuntariamente, na minha mente já tinha pronta a tradução de uma dúzia de poemas.

A primeira poesia de Torga em versão romena, publicada numa revista literária romena, data de 1983; apareceram logo depois outras espalhadas em vários jornais e revistas literárias. No mesmo ano, uma outra viagem a Portugal, um outro encontro com Torga. Desta vez no seu consultório de Coimbra, no Largo da Portagem. Levava comigo umas centenas de páginas de traduções, projectos, sonhos… E, desta vez, assim como outrora, o homem, o poeta, os dois juntos, tiveram tempo e atenção para mim. Na altura já tinha começado a tradução de Contos da Montanha e uma pequena antologia de poemas que viriam a ser publicados por uma prestigiosa editorial de Bucareste. Lemos quase todos os poemas que tinha conseguido traduzir: eu, lendo em voz alta – claro, Torga não sabia romeno –, ele, escutando, extremamente atento à harmonia, à musicalidade das formas, sem esquecer uma vírgula, perguntando sempre sobre as conotações exactas das palavras e trabalhando a meu lado para escolher a palavra mais adequada. Foram horas e horas de trabalho. E os dois tínhamos medo: eu, de não conseguir a tradução, ele – como havia de descobrir mais tarde, na sua carta escrita aos leitores romenos, como introdução ao volume publicado –, da reacção dos leitores romenos perante os seus textos e poemas. Ao rever aquele tempo, lembro-me de que nem tudo foi trabalho: de vez em quando, o ar era rasgado com a delícia duma conversa, com piadas, vários comentários políticos e lembranças, muitas lembranças da sua vida. Foi todo um tempo inesquecível.

Devo muito da minha formação espiritual a Torga, às suas ideias, ao seu modo de ver e viver. Penso agora que personalidades como Torga, com o seu estranho poder de observação, com a sua perspicácia psicológica, com a sua integridade de carácter e a dignidade do seu dictum, enfim, com a sua infinita emoção perante o quotidiano sem fronteiras, deveriam formar escolas, escolas de homens verdadeiros que poderiam popular melhor esta pobre terra universal. Na altura, o trabalho e as conversas com o Poeta foram as minhas mais preciosas lições de tradução e de vida.

De regresso ao meu país, continuei o trabalho na antologia poética e acabei por traduzir também Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha. A tradução impôs que vencesse todas as dificuldades inerentes ao vocabulário regional ou arcaico, à sintaxe particular, própria muitas vezes do registo da linguagem popular; o verso torguiano, uma vez cifrado, apresentava outras dificuldades, pelas conotações intertextuais que estabelecia. Neste lavor em prol duma poética tão genial, procurei aliar a fidelidade do nível léxico-semântico à harmonia de ritmo e rima. Às vezes, quando não era possível doutra maneira, optei pelo verso branco, evitando que a tirania da rima pudesse produzir erros de equivalência. Na organização da antologia, guiei-me por um critério forçosamente pessoal e subjectivo: foram incluídos aqueles poemas – com poucas excepções determinadas pela censura que existia na altura no meu país – que o meu gosto, a minha mente e a minha alma memorizaram nas prodigiosas leituras ao longo dos anos. Em 1981, quando apareceu a Antologia Poética feita pelo autor, a minha já estava pronta; aquela ajudou-me, contudo, para inserir outros poemas ainda não seleccionados. O trabalho e as revisões levaram-me à conclusão da necessidade de uma antologia em edição bilingue. Desta maneira, os leitores romenos possuiriam o original, tal como ele fica para sempre, e, ao mesmo tempo, teriam à mão uma possibilidade de verificar a tradução. Na altura não foi possível: vários motivos, tornados outros tantos obstáculos, foram invocados Mas essa antologia bilingue, completada com os poemas que a censura excluiu na altura, continua a ser o meu sonho mais querido, mesmo que ainda não concretizado.

Os poemas apareceram em letra de forma com o título Poeme lusitane [Poemas lusitanos] apenas em Dezembro de 1989 – temporada radical e muito quente para a história da Roménia. Pareceu que o próprio Poeta, homem apaixonadamente ligado à liberdade, tinha escolhido esse momento de queda de um regime totalitário e opressivo como data para o aparecimento da versão romena dos seus poemas. A tiragem foi de 20 mil exemplares, que se esgotaram em pouco mais de uma semana!

– Porque é que a obra de Miguel Torga teve um impacto tão grande sobre os leitores romenos?

A obra de Torga nasceu da contínua necessidade de o Homem poder encontrar nela a contemplação do rosto da sua ilimitada interioridade, de se achar de novo na multiplicidade das suas manifestações autênticas, de se confrontar consigo e com o mundo real nas mais diversas hipóstases da sua grandeza e esplendor, da sua pequenez e horror. Frente a frente com esta obra literária, o leitor romeno descobriu e viu o que não sabia que via, sentiu reverberando nele o que outrora o deixava indiferente. E isso aconteceu porque o que, por motivos vários, no mundo real, fica escondido, inexplicável, contradiz ou limita a liberdade de manifestação de qualquer indivíduo, no mundo da literatura está à vista, “desconspirado” e torna-se compreensível. Mais do que isso, por pouca importância que tenha um facto e por muito longínquo que seja o tempo em que ocorreu, ele pode tornar-se, nas páginas do livro, portador dumas significações humanas que se relevaram ao leitor. Naquele Dezembro de 89, revelou-se aos leitores romenos uma obra cuja expressão artística resultou de uma posição ética perante a vida e a realidade. ”Poeta rebelde em tempos de catástrofe”, como ele mesmo se intitulava, Miguel Torga agradou aos romenos, porque, ao lado dos outros grandes escritores, foi naquela hora o porta-voz dos altos e verdadeiros conceitos de dignidade humana. Uma obra com uma temática quase intemporal: a oposição da Terra e do Céu, do Homem e de Deus, anunciando a vitória do imanente sobre o transcendente, não podia não ser rapidamente preferida num país que assistiu, no segundo quartel do século passado, a uma exacerbação do silêncio, resultante de uma ditadura vazia de legitimidade e de ideias. Naquela altura, os romenos podiam identificar-se, respirar e falar apenas ao ritmo das obras literárias que lhes re-ensinavam a dignidade e a agir em liberdade. Essas obras foram como uma espécie de brechas nas nossas grandes solidão e opressão.

Esta obra, que nunca teve qualquer publicidade, está traduzida no mundo inteiro e Miguel Torga é um nome consagrado e admirado por todos, independentemente de fronteiras e nacionalidades. O seu talento conseguiu universalizar o pequeno canto da terra que foi uma das suas maiores paixões: Portugal. Escrevendo para todos nós, cada um de nós se identifica com o seu dizer. Assim começámos de novo a aprender com Torga o nome da liberdade:


– Liberdade, que estais no céu…
rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

– Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome
– Liberdade, que estais em mim,
santificado seja o vosso nome.


Na nossa língua, estes versos soavam assim:

– Libertate, care eşti în ceruri ….
Spunea rugăciunea pe care-o ştiam,
Cerându-ţi umil
Pâinea cea de toate zilele.
Dar bunătatea ta atotputernică
Nu mă auzea.

– Libertate, care eşti pe pământ…
i vocea mea creştea / De emoţie.
Dar o tristă linişte îngropa
Credinţa de care era plină
Ruga mea.

Până-ntr-o zi, când, curajos,
Am privit altfel şi-am putut, uimit,
Să gust deodată,
Pâinea foamei mele.
– Libertate, care eşti în mine,
Sfânt fie numele tău.


Hoje em dia, os versos e as histórias de Torga continuam a acompanhar-nos… e novas e novas gerações de alunos aprendem a beleza deste idioma português ao ritmo dos seus versos. Aprendem também a dignidade individual e política, decifrando os seus textos, nos quais Torga confessa:

(…) lutei, luto e lutarei até ao derradeiro alento pela preservação dessa identidade, última razão de ser de qualquer indivíduo ou colectividade, e que repudio com todas as veras da alma a irresponsabilidade da Europa que em Maastricht, sornamente, a tenta negar, trair-se e trair-nos.

Escritas em 1992, estas palavras de Torga parecem ter sido escritas também para nós, os romenos que atravessamos actualmente o difícil período de reconcilação connosco próprios e com uma Europa donde nunca tínhamos partido.

Hei-de considerar-me contente se, com estas traduções, tiver contribuído para comunicar, embora de maneira modesta, a beleza de uma obra literária exemplar, de um verbo agreste e ardente. Esta tradução, que me trouxe muitas noites de insónia, constituiu afinal uma obra de que mesmo Torga gostou, como confessou a um confrade.

Uma tradução, seja ela processo ou acontecimento, não pode ser possível sem “uma iluminação afectiva”, como dizia Torga, lembrando a “alquimia” de Borges, essa iluminação que pode compreender mais do que a mestria profissional: as profundezas de uma obra, a identidade de um homem, de um povo.



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| Número 7 | Junho 2005 |
Editorial
Artigo
"A Misteriosa Alquimia" de uma Tradução - Miguel Torga em Romeno
Patrono
S. Jerónimo no Seminário de Coimbra
Dicionário
Martim Fernandes
Alexandre de Ataíde
Citação
Pedro Tamen
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