Carlos Castilho Pais
(Universidade Aberta)
Habituámo-nos a discutir tudo ou quase tudo na tradução. Um dia teremos que averiguar como se alicerçou esta ideia no senso comum. As notas de rodapé estão, variavelmente, a mais, ou fazem falta na obra traduzida. No romance são, quase sempre, intoleráveis; mas aceitam-se facilmente no ensaio, seja qual for a sua natureza.
Falo, como já se compreendeu, das notas do tradutor, que devem distinguir-se das notas do editor, e que também existem, umas e outras, regra geral, identificadas pelas iniciais N. do E. / N. do T. Para além de identificarem responsabilidades, as iniciais da expressão indicam ao leitor um espaço extra-textual inexistente na obra de partida.
Como não pode deixar de ser, também aqui será necessário mostrar o que acontece. Desconheço melhor antídoto para a mudança do senso comum do que aquele que descreve o modo de proceder em determinada obra traduzida. Espero também que este modesto contributo esclareça de que modo a reflexão sobre as notas de rodapé da obra traduzida pode revestir-se de alguma utilidade, quando se pretende compreender determinada tradução.
Antes disso, devo afirmar que não me autorizo proferir uma opinião contrária à do tradutor. A tradução pertence-lhe, assim como é sua a teoria aplicada, na qual se inclui, evidentemente, a sua relação com o leitor. Neste sentido, não será desajustado, a propósito deste assunto como de outros, lembrar os versos do ‘clássico’ Charles Perrault, assim traduzidos em português por Manuel João Gomes e Luiza Neto Jorge, extraídos dos Contos obra publicada em 1977, que muito me apraz aqui recordar, e que o tradutor da obra em questão poderia fazer seus:
Será razão definitiva
Para tirar-me de um jantar
Certa iguaria, se um conviva
Resolve dela não gostar?
Importa é que cada um viva,
Que sejam vários os manjares,
Pois vários são os paladares.
(Charles Perrault, Contos, trad. de Manuel João Gomes e
Luiza Neto Jorge, ed. Estampa, p. 50)
Escolhi a tradução de uma obra de Albert Camus no momento em que se comemoram os noventa anos do nascimento do Prémio Nobel da Literatura de 1957. A tradução (A Queda) de La Chute (narrativa [«récit»] publicada em França em 1956) integrou a colecção dos Livros RTP/Verbo do início da década de setenta do Séc. XX com o nº 39, e esta edição é ainda aquela que o leitor actual pode encontrar nas livrarias, sob a chancela dos Livros do Brasil.
Os tradutores das obras de Albert Camus, de António Quadros a Urbano Tavares Rodrigues, são profundos conhecedores da realidade francesa. José Terra, o tradutor de La Chute, integra o grupo. Desconheço qualquer opinião de José Terra sobre Camus. Porém, creio que a opinião reinante não estava longe daquela que sobre si o próprio escritor havia transmitido ao mundo no seu discurso da Suécia ao receber o Prémio Nobel. O Escritor não era daqueles que vivia numa «feliz irresponsabilidade». António Quadros primeiro tradutor português de Camus (O Estrangeiro) - realçava isto mesmo, quando prefaciava a sua tradução de Les Justes (Os Justos), publicada no ano do desaparecimento do Escritor (1960):
Albert Camus impôs-se-me antes de mais nada como um dos poucos escritores sérios da nossa época (não são tantos, os escritores sérios, como o dá a entender a «bibliografia da fama literária»...). Escritor sério porque, para ele, a literatura não era um jogo, um pretexto para afirmação pessoal, um meio de atingir a glória, uma actividade gratuita e sem responsabilidade no próprio destino do mundo ou ainda uma forma de enfeudamento às suspeitas forças de uma sociedade egolátrica ou desviada do seu mais fundo sentido criador.
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(António Quadros, prefácio a Os Justos (Albert Camus),
Lisboa, Livros do Brasil, 1960, p.129)
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Procedemos, a seguir, a uma curta análise das notas do tradutor à tradução portuguesa de La Chute.
As notas de rodapé e o texto da partida
Detectámos apenas cinco notas de rodapé na edição atrás mencionada, de bolso, constituída por cento e dez páginas. Apesar da escassez, podemos analisá-las, por um lado, do ponto de vista da relação do tradutor com o texto de partida e, por outro lado, do ponto de vista da relação do tradutor com o leitor. No primeiro grupo predominam os dados relativos ao original e às opções concretas de tradução, no segundo, predominam os dados civilizacionais e históricos que poderiam oferecer maior dificuldade ao leitor português. Iremos ocupar-nos, para já, das notas relativas ao primeiro grupo.
Diz a primeira nota (p. 9): «Há que ter em conta, aqui e mais adiante, o facto de ter sido empregado, no original, o imperfeito do conjuntivo, de uso pouco corrente». Ela está colocada no momento em que o narrador acaba de dizer o seguinte: «Quando estava em França, não podia encontrar um homem de espírito, sem que buscasse imediatamente o seu convívio. Ah! Noto que implica com este imperfeito do conjuntivo». A questão que, certamente, o tradutor se terá colocado é: compreenderá o leitor português a seguinte fala do narrador « Ah! Noto que implica com este imperfeito do conjuntivo» -, e isto, apesar de o tradutor ter cuidadosamente colocado o verbo da fala anterior - «buscasse» - no imperfeito do conjuntivo. À primeira vista, a análise frásica da tradução resolveria o problema. Neste caso, seria desnecessária esta nota. Mas ela está lá, importa compreendê-la. Poderíamos classificá-la como simples informação dada ao leitor português, desconhecedor dos usos da língua francesa. No entanto, ela denota ainda uma outra e mais importante preocupação por parte do tradutor: uma preocupação em justificar e em tornar coerente a fala do narrador.
A coerência de que falamos diz respeito, evidentemente, ao texto de chegada. A coerência que o tradutor terá lido no texto de partida não poderia transferir-se para o texto de chegada sem esta nota. Não hesitamos, por conseguinte, em afirmar que esta nota revela sobretudo a necessidade que o tradutor terá sentido em fazer compreender que o texto da sua tradução procura a coerência detectada no texto original. Encontramo-nos face a uma vontade de equivalência, que talvez passasse despercebida, se a nota de rodapé não tivesse aqui sido colocada. A equivalência desvenda sempre a leitura do tradutor. Ela diz-nos que são coerentes as palavras do narrador e que a sua observação (final da fala) tem toda a razão de existir. Neste caso, só a nota de rodapé nos permitiu desvendar a leitura do tradutor. Por aqui se vê também a utilidade das notas de rodapé.
A quarta nota (p. 38) revela-nos ainda um tradutor preocupado com a sua ‘boa’ tradução. Ela surge logo após uma expressão não traduzida - «poulet laqué». Explica-se que o “«frango com laca» é uma especialidade da culinária chinesa”. Como se constata, o que se apresenta não traduzido no texto da tradução é traduzido em nota. Também aqui, mais do que a preocupação com o leitor, encontramos a justificação de um modo de fazer, de uma opção. E é nesta justificação que o tradutor se desvenda. O tradutor desaprova a tradução literal da expressão ‘frango com laca’ -, preferindo a sua importação. Deste modo, a nota fica justificada. Para os leitores de hoje, com a proliferação dos restaurantes chineses, a nota terá a sua graça.
Neste grupo incluo também a quinta nota, a última (p. 74) da obra traduzida. O tradutor indica que o termo desconforto grafado com aspas (‘desconforto’), corresponde ao termo malconfort, tendo até o cuidado de mencionar o número da página do original em que aparece, o que pode revestir-se de alguma utilidade para uma didáctica da tradução, mas é inócuo para os leitores, contrariamente às notas 2 e 3, das quais nos ocuparemos a seguir.
As notas de rodapé e o leitor
As restantes notas dois e três dirigem-se predominantemente ao leitor português, o qual, na opinião do tradutor, pode desconhecer determinados dados civilizacionais ou históricos. Ao primeiro caso (dados civilizacionais) corresponde a nota dois, enquanto a nota três corresponde ao segundo caso (dados históricos). Assim, a nota dois (p. 10) esclarece que o termo docteur se refere sempre a um médico, quando em Portugal assim não é, como sabemos. E, se esta nota pode se encarada, predominantemente, como informação ao leitor, ela não deixa de indicar uma direcção de leitura ao fazer com que se compreenda um certo ‘dasapontamento’ da personagem. Pelos trechos seguintes (tradução/original) pode verificar-se uma tradução quase literal. No trecho traduzido, o lugar da nota vai assinalado com asterisco. Numa reflexão puramente didáctica haveria que interrogar se esse lugar não deveria antes figurar em frente ao termo médico. Aqui, respeitamos a opção do tradutor.
Sim, o gorila abriu a boca para me chamar doutor*. Nestas terras toda a gente é doutor ou professor. Gostam de ser respeitados, por bondade e por modéstia. Entre eles, pelo menos, a maldade não é uma instituição nacional. De resto, eu não sou médico. Se o pretende saber, dir-lhe-ei que era advogado, antes de vir para aqui. Agora, sou juiz-penitente.
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Oui, le gorille a ouvert la bouche pour m’appeler docteur. Dans ces pays, tout le monde est docteur, ou professeur. Ils aiment à respecter, par bonté, et par modestie. Chez eux, du moins, la méchanceté n’est pas une institution national. Au demeurant, je ne suis pas médecin. Si vous voulez savoir, j’étais avocat avant de venir ici. Maintenant, je suis juge-pénitent.
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Finalmente, a nota três (p. 26). Esta nota esclarece o nome próprio “Bazaine” («Ah! Les Bazaine!» - texto original), traduzido por “Bazaines” («Ah!, os Bazaines!»). Com efeito, diz a nota, Camus «deve referir-se ao marechal François-Achille Bazaine» do exército francês do século XIX. Eu, leitor, não sabia. Fiquei esclarecido. E, grafada a palavra no plural, contrariamente ao original, muito difícil se tornaria a procura do esclarecimento...
A existência das notas de rodapé em A Queda evidencia um modo de traduzir que faz a opção pelo leitor, presente até nas notas em que os dados relativos ao original são predominantes. Nesta opção devem incluir-se ainda a divisão da obra traduzida em capítulos (apenas esboçados no original), bem como a respectiva numeração.
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