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Turgimão

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«Bíblia» dos Jerónimos, 1497, (pormenor)

A primeira referência a este termo, já anotada pelos dicionários etimológicos, vamos encontrá-la num texto proveniente do scriptorium do Mosteiro de Alcobaça e que Frei Fortunato de S. Boaventura incluiu no segundo volume da Colecção de Inéditos Portugueses (1829). Possivelmente do século XIV, as Historias d’abreviado Testamento Velho contam, seguindo o Génesis, no capítulo 79, a chegada dos irmãos de José ao Egipto em tempo de fome. Como é sabido, José, filho de Jacob, tinha sido vendido pelos irmãos, os mesmos que José agora recebe no Egipto, onde granjeara os favores do faraó. Por não pretender desvendar o parentesco que o unia aos irmãos, José utiliza os serviços do intérprete. Diz o texto:

 

(...) fez prender huu deles, que havia nome Symeom, e leixou os outros, e eles diziam huus contra os outros, per sua linguagem: com dereito padecemos esto, porque pecamos em nosso irmaaõ, veendo a coita da sua alma, quando nos rogava, e non o quisemos ouvir; e eles cuidavam que os non entendia Joseph, porque ele non lhe falava senon per torgimam.
(Frei Fortunato de S. Boaventura, Colecção de Inéditos Portugueses, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1829, 2º vol., p. 67).

 

Folha do Calvário na edição da Vita Christi de Valentim Fernandes, Lisboa, 1495. Biblioteca Nacional, Lisboa


Já no século XV, Frei João Álvares utiliza o termo várias vezes na sua obra Tratado da Vida e Feitos do Muito Virtuoso Senhor Infante D. Fernando. Talvez redigida durante a década de cinquenta do século XV e relatando acontecimentos recentes, presenciados pelo próprio autor, a obra de Frei João Álvares deve considerar-se como um dos documentos mais importantes para a decifração temporal do uso do termo. Será necessário referir que o autor da obra relata a vida do ‘Infante Santo’, (irmão do rei D. Duarte, de D. Pedro e de D. Henrique), de quem fora secretário e que acompanhara no cerco de Tânger em 1437. O insucesso de Tânger tornou cativos em Fez, entre outros, o Infante e o secretário.

No cativeiro viria a falecer, em 1443, D. Fernando. Devem, por conseguinte, merecer-nos toda a confiança as informações de Frei João Álvares, das quais destacamos, evidentemente, as relativas à comunicação entre ‘mouros’ e ‘cristãos’. Assim, o termo turgimão surge no momento da entrega do Infante e da sua comitiva e durante o cativeiro, uma primeira vez para situar os ‘recados’ para o Infante cativo provenientes de Çala bem Çala (‘senhor de Fez’) e, mais tarde, para descrever o modo utilizado pelo Infante para comunicar com quem o mantinha no cativeiro.

 

Com o Ifante nom hya a cavalo salvo Çala bem Çala e huu christãao que la vivia com ele, a que chamavam alcaide Migeel, que foy aly torgimom das entregas do Ifante. (...) E com estas razõoes concluiu e se foy. E jamais dally adiante nunca quis (Çala bem Çala, senhor de Fez) viir veer o Ifante nem falar com ell, senom enviava.lhe seus recados per huu judeu que era torgimam. (...)
O Ifante demandou torgimom e lhe falou neesta maneira: (...)

(Frei João Álvares, Obras, ed. Crítica de Adelino de Almeida Calado, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, Volume I, pp. 26, 32, 50)
 

Situando-nos ainda no século XV e, mais precisamente, no reinado de D. Afonso V (1448-1481), dirigimos agora a nossa atenção para a corte portuguesa e para um nome que aí desempenhou o cargo de intérprete. Uma carta da Chancelaria de D. Afonso V revela-nos o nome de Diogo Dias, que o Rei refere como “seu turgimão”. Datada de 1465, a carta não menciona o momento em que Diogo Dias foi nomeado ou quem o substituiu no cargo. De resto, a carta não lhe diz directamente respeito. Ela assinala apenas o seu empenho junto do Rei a favor do castelhano Rodrigo de Sevilha, que pretendia lhe fosse autorizado o porte de armas.  

 

A quantos esta carta virem fazemos saber que querendo nós fazer graça e mercê a R. de Sevilha, castelhano, morador em Lisboa, pelo de Diogo Dias, nosso turgimão, que no-lo por ele pediu, temos por bem e queremos que daqui em diante ele possa trazer de noite e de dia quaisquer armas que lhe aprouver por todos nossos reinos e senhorio.
(In Sousa Viterbo, Notícias de Alguns Arabistas e Intérpretes de Línguas Africanas e Orientais, Coimbra: Imprensa da Universidade,1906, p. 27)


Iluminura com a suposta representação do infante D. Henrique, na Crónica dos Feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara, 1453?-pós-1460. Bibliothèque Nationale, Paris.

Transitamos agora para os cronistas e autores que escreveram sobre os primeiros momentos da Expansão Portuguesa. Se, até aqui, os dados apresentados revelam um único nome para designar o intérprete durante a Idade Média, os próximos indicam uma época que vê nascer outra designação. É, por conseguinte, um momento de transição aquele que ainda utiliza o termo turgimão, mas que faz já uso do novo termo - língua - e onde a utilização do termo antigo parece necessitar já de alguma explicação.

Representação dos finais do século XVI de cafres, segundo Jan Huygen van Linschoten, na Histoire de la Navigation (...), Amesterdão, 1638.

Habitantes da Guiné, em Die Merfart uñ Erfarung (...) de Baltasar Sprenger, Augsburgo?, 1509.

O termo preferido do cronista Gomes Eanes de Azurara é ainda o de turgimão, embora aqui e além constatemos a utilização do termo “enterpetador” na sua Crónica de Guiné. O referido momento de transição deve situar-se, por conseguinte, entre os últimos anos do reinado de D. Afonso V e o início da reinado de D. João II. Numa carta de alforria de 1477 (reinado de D. Afonso V), o Príncipe D. João, futuro rei D. João II, refere que João Garrido “fora algumas vezes por língua à Guiné”. Recordamos que há pouco mencionámos uma carta da Chancelaria de D. Afonso V onde o termo utilizado foi o de turgimão.

Garcia de Resende, Livro das Obras de Garcia de Resende, Évora, 1554.


E se este termo aparece ainda no Cancioneiro Geral, compilado e publicado por Garcia de Resende em 1516, mas cujas composições, pelo menos para um grande número delas, datam de anos muito anteriores à data da publicação, já na obra do mesmo autor, a Crónica de João II, provavelmente escrita na década de trinta do século XVI, é o termo língua o utilizado. Damos como exemplo o trecho seguinte no qual Garcia de Resende narra a segunda viagem de Diogo Cão ao Manicongo em 1485:

 

O qual hindo polla dita cofta com affaz perigo, e trabalho, foy ter com a dita armada ao rio de Manicongo, (...) o qual rio, e terra de Congo he de Portugal mil e fetecentas legoas, onde por fer tão longe da outra terra de Guine já defcuberta não fe poderão entender com a gente da terra, e levando muytas lingoas nenhua entendia, nem fabia aquella lingoagem.
(Garcia de Resende, Cronica de D. João II e Miscelânea, Lisboa: INCM, 1991, p.221).


Notemos ainda que o termo existia e era de uso corrente nesta época em castelhano, francês e italiano, com as diferenças próprias de cada língua. Introduzido pelos árabes, que o adoptaram do Caldeu, onde significava ‘expositor’, o termo (torgeman), tounou-se truchement ou trucheman na língua francesa. O italiano Cadamosto escreve turcimano; mas, curiosamente, a tradução portuguesa da sua obra (Navegações) que conhecemos emprega não só o termo turgimão, mas também o termo língua, embora no original se encontre sempre turcimano.


Carlos Castilho Pais

| Número 1 | Maio 2002 |

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