Arquitecto do primeiro modernismo português, Carlos Ramos retrata-se a si próprio como membro de uma geração de transigentes [1] que teve de contemporizar ou mesmo abdicar de alguns dos seus ideais de forma a garantir a sua sobrevivência profissional. Nesta afirmação, Ramos mostra-se consciente dos custos e compromissos que implicou essa atitude. Depois da sua obra evoluir da influência art déco à afirmação da linguagem modernista, privilegiando a depuração e o tratamento rigoroso dos volumes[2], os projectos assinados entre 1930 e 1950 revelam-se qualitativamente irregulares. Testemunham o carácter eminentemente prático e epidérmico do modernismo nacional e a adopção de valores modernos utilizados como mais um vocabulário de uma linguagem ecléctica, cada vez mais historicista e revivalista. Deste modo, vemo-lo recorrer a um monumentalismo neoclássico, marcado por uma clara geometrização e uma frugalidade ornamental exterior quando se trata de representar o poder; a propor habitações, postos fronteiriços ou tribunais num regionalismo vernacular e com recurso a materiais de construção tradicionais; ou a projectar equipamentos públicos funcionalistas com técnicas e materiais modernos, como o betão armado e o vidro. Os inúmeros postos fronteiriços juntamente com os vários tribunais, equipamentos hospitalares e planos urbanísticos fazem dele uma figura importante na edificação da imagem arquitectónica do Estado Novo levada a cabo por Duarte Pacheco e pelo Ministério das Obras Públicas.
Inerente a toda a sua obra arquitectónica está a procura em ultrapassar a aparente contradição entre os conceitos de modernismo e nacionalismo. Ao defender que nacionalismo não passa do conhecimento exacto do espaço em que vivemos e modernismo a consciência exacta do nosso tempo, Carlos Ramos procura encontrar, sem sucesso, a expressão arquitectónica que resultasse da articulação dos princípios funcionalistas com a especificidade nacional. Contudo, ao defender este princípio, antecipa o Regionalismo crítico dos anos cinquenta.
Filho, sobrinho e neto de professores, Carlos Ramos toma a função educativa como o principal legado familiar. Para Ramos formar não é uma acção confinada à sala de aula nem se limita ao ensino de conhecimentos teóricos ou práticos. Formar é sobretudo transmitir uma ética profissional e uma consciência de classe que Ramos veicula através do seu exemplo, pois acredita que só com uma vida associativa forte e uma intervenção coesa dos arquitectos na sociedade civil é que se evitará uma outra geração de transigentes.
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Carlos Ramos no atelier - finais dos anos 40
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Deste modo, e por defender que depende da mudança do sistema educativo toda e qualquer evolução da arquitectura nacional, só possível quando a educação estética de meia dúzia de gerações sucessivas fôr feita com cuidado, bom senso e um grande sentido de equilíbrio [3], Carlos Ramos elege a formação como objectivo maior da sua vida. Em 1933 concorre ao lugar de professor da 4ª cadeira de arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, juntamente com Paulino Montez, Cassiano Branco e Cristino da Silva. Fá-lo em nome dessa consciência e da determinação profunda em mudar o considerado obsoleto sistema de ensino. Perdida esta oportunidade para Cristino da Silva, Ramos transforma rapidamente o seu ateliê em Lisboa numa escola prática para as novas gerações de arquitectos que, durante os anos 1930 e 1940, encontram no Largo de Santos um contraponto ao ensino academizante protagonizado pela Escola. No ateliê Ramos exerce um papel de extrema relevância na tomada de consciência das novas gerações que com ele convivem, trabalham e aprendem. Por ali passam Keil do Amaral, Dário Vieira, Adelino Nunes, Raul Tojal ou Nuno Teotónio Pereira, entre muitos outros. É neste período que se torna uma referência incontornável para as novas gerações nem sempre atravez das suas obras em que foi, por vezes, forçado a transigências, mas sempre atravez de encorajamentos aos outros e da defeza inabalável do seu direito a quererem ser coerentes com o seu tempo [4].
Concorrendo para este entendimento da formação, Carlos Ramos elege a palavra como meio privilegiado de comunicação e partilha. Homem de grande cultura geral, detentor de um rápido e ágil raciocínio e de uma escrita clara e apelativa, distingue-se em palestras, conferências e debates em que participa pelo seu discurso eloquente e retórico de fino e acutilante humor. Sem ser autor de um profundo corpo teórico reflecte criticamente sobre a evolução da arquitectura e a função e formação do arquitecto, acaba por ganhar notoriedade entre a sua geração que pouco ou nada deixou escrito. Para Carlos Ramos toda e qualquer reflexão é indissociável da comunicação enquanto veículo de transmissão de conhecimentos e experiências. Daí recorrer sistematicamente ao seu percurso como exemplo prático, a interjeições pessoais e a imagens alegóricas de modo a facilitar a compreensão do seu raciocínio a toda a plateia. A reforma do sistema de ensino é a outra temática constante das suas comunicações. E mesmo que tal não aconteça, emana de todos seus discursos uma forte consciência pedagógica.
Mas é na Escola de Belas Artes do Porto que Carlos Ramos acabará por concretizar o seu pensamento. A praticabilidade efectiva deste pensamento inicia-se em 1940 quando substitui Marques da Silva e assume as funções de professor interino da 4ª cadeira de arquitectura. Até 1952 à excepção de 1946 a 1948 em que lecciona na Escola de Lisboa Ramos introduz uma série de inovações no ensino da arquitectura. Instaura a prática de as provas de arquitectura serem antecedidas por duas lições e leva os alunos a confrontarem-se com programas contemporâneos fazendo-os trabalhar sobre a arquitectura hospitalar, os aquartelamentos, a habitação colectiva ou os planos urbanísticos, enquanto fomenta o contacto directo com a prática profissional. É assim que promove a colaboração efectiva de discentes e docentes da Escola do Porto em projectos da sua responsabilidade. Na porta da sala de aula um excerto da definição de arquitecto de Vitrúvio [5] relembra a todos que a formação é um acto contínuo e ininterrupto. No seu interior, Ramos promove a liberdade de expressão dos alunos, ajudando-os a desenvolver a sua capacidade de argumentação através da defesa das suas opções técnicas e formais. Máxima liberdade com máxima responsabilidade [6] é o lema constantemente repetido.
Em 1952, Carlos Ramos abandona a sala de aula para assumir a direcção da Escola. Durante 15 anos consegue criar e manter, longe do estreito espartilho ideológico do Estado Novo, um microcosmos profícuo para a afirmação de uma consciência social e política inseparável das novas tendências arquitectónicas dos anos 1950/60. Este é um objectivo conseguido à custa de cedências, compromissos e pontuais ambiguidades numa delicada diplomacia. Durante este período, Ramos assume-se como catalisador ao promover um conjunto de actividades extracurriculares que procuram fazer da Escola um espaço cultural: as Magnas onde se sente o pulsar da Escola com a exposição dos trabalhos de alunos e professores de arquitectura, pintura e escultura numa união das três artes; as exposições autorais ou temáticas; os cursos de verão e viagens; os concertos, debates, colóquios ou ciclos de cinema.
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Carlos Ramos atelier - 1968
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A Escola nunca foi entendida como um fim em si próprio, mas antes um meio de prosseguir a sua ideia de pedagogia. A sua importância não está apenas no que fez, disse ou lutou; encontra-se sobretudo na criação de um espaço livre, incentivador da acção de outros. Ramos teve a particular capacidade de saber olhar e congregar à sua volta homens de diferentes gerações, chamando-os para a Escola. Se o seu axial objectivo é construir uma escola de pessoas, a sua maior herança encontra-se no sentido de escola que transmite aos seus discípulos. Ramos forma no Porto alguns dos nossos mais importantes arquitectos desde a década de 1960 até à actualidade, entre os quais se destacam Mário Bonito, João Andresen, Arnaldo Araújo, Octávio Lixa Filgueiras, Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez, Fernando Távora, Manuel Mendes, Alcino Soutinho e Álvaro Siza Vieira. Os diferentes percursos tomados por estes arquitectos e a sua importância na afirmação da arquitectura nacional, no desenvolvimento do ensino ou na reflexão teórica e histórica testemunham, mais uma vez, a herança do mestre cuja qualidade mais valorizada é o seu profundo sentido de equipa. É por estas razões que Alexandre Alves Costa apresenta a sua geração com objectivos, atitudes e convicções completamente diferentes dos de Carlos Ramos, mas acaba por se confessar herdeiro deste ao afirmar sem ele, não seríamos o que somos [7].
Notas:
[1] Carlos Ramos, Alguns problemas de Urbanismo, conferência organizada pelo ODAM, Ateneu Comercial do Porto, 1951 (manuscrito - Departamento de Documentação e Pesquisa Centro de Arte Moderna).
Bibliografia:
ALMEIDA, Pedro Vieira, FILGUEIRAS, Octávio Lixa, GONÇALVES, Rui Mário e RAMOS, Carlos Manuel, Carlos Ramos. Exposição retrospectiva da sua obra. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.
COUTINHO, Bárbara dos Santos Carlos Ramos (1897-1969): Obra, Pensamento e Acção. A Procura do Compromisso entre o Modernismo e a Tradição. Lisboa: FCSH/ UNL, 2001.
COUTINHO, Bárbara dos Santos, Carlos Ramos, Comunicar e Professor Contributo para a Afirmação e Divulgação do Moderno in AA.VV., Arquitectura Moderna Portuguesa. 1920 -1970. Lisboa: IPPA, 2004.
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ACCIAIUOLI, Margarida Exposições do Estado Novo 1934-1940. Lisboa: Livros Horizonte, 1998.
ACCIAIUOLI, Margarida Os Anos 40 em Portugal. O País, o Regime e as Artes. Restauração e Celebração, dissertação de doutoramento em História da Arte Contemporânea, F.C.S.H., U.N.L., Lisboa, 1991, 2 vol.
ALMEIDA, Pedro Vieira de; FERNANDES, José Manuel "A Arquitectura Moderna", in História da Arte em Portugal. Lisboa: Alfa, 1986. vol. XIV.
ALMEIDA, Pedro Vieira de Os concursos de Sagres. Representação 35 Condicionantes Consequências, dissertação de doutoramento, Universidade de Valladolid, 1998.
BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried (org.) A Arquitectura do Século XX. Portugal. Lisboa, Frankfurt: Portugal-Frankfurt 97, DAM, 1997.
COSTA, Alexandre Alves Introdução ao Estudo da História da Arquitectura Portuguesa. Porto: FAUP, 1995
FERNANDES, José Manuel Arquitectura Modernista em Portugal [1890.1940]. Lisboa: Gradiva, 1993.
FRANÇA, José-Augusto A Arte em Portugal no Século XX. Lisboa: Bertrand,1974 (2ª ed., 1984).
PEREIRA, Nuno Teotónio; FERNANDES, José Manuel "A Arquitectura do Estado Novo de 1926 a 1959" in O Estado Novo das Origens ao Fim da Autarcia (1926-1959). Lisboa: Fragmentos, 1987. Vol. II, pp. 323-357.
PORTAS, Nuno "A Evolução da Arquitectura Moderna em Portugal: uma Interpretação" in Bruno Zevi, História da Arquitectura Moderna. Lisboa: Editora Ática, 1970-79. Vol II.
TOSTÕES, Ana Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa nos Anos 50. Porto: FAUP, 1997.