por Teresa Soares Correia

Gomes Leal

António Duarte Gomes Leal nasce em Lisboa em 1848. Filho ilegítimo de um funcionário público, vive com a mãe e a irmã, a sua principal fonte de inspiração. No ano da morte de sua irmã, em 1875, publica Claridades do Sul, a sua primeira obra poética. Quando a mãe morre, converte-se ao catolicismo, o que tem influência na sua obra. Poeta e jornalista, é escrevente de um notário e publica inúmeros textos panfletários de denúncia político-social. A sua poesia oscila entre os três grandes paradigmas literários do final do século XIX: romantismo, parnasianismo e simbolismo. De 1899 a 1910, compõe e publica quase diariamente. Termina os seus dias na miséria, primeiramente vivendo da caridade alheia, na rua, e depois sustentando-se com uma pensão anual do Estado português que lhe foi conseguida por um grupo de amigos, dos quais se destaca Teixeira de Pascoaes. Morre em 1921.

Gomes Leal é considerado um precursor do Modernismo Português, tendo sido referido por Fernando Pessoa como um dos seus mestres. Este dedica-lhe o soneto Gomes Leal, publicado pela Ática na edição das Obras Completas de Fernando Pessoa, em 1967.

Apesar de se mover literária e pessoalmente nos círculos próximos da Geração de 70, não integra o grupo dos “Vencidos da Vida”, referindo, porém, o apreço que Eça de Queirós e Antero de Quental lhe dedicam, num comentário feito pelo próprio Gomes Leal na obra “A Morte do Rei Humberto” (1900), citado por Gomes Monteiro, em O Drama de Gomes Leal. Com inéditos do Poeta. Gomes Leal tem aliás o cuidado de se distanciar das correntes estéticas da altura, fazendo-o nomeadamente na Nota a Claridades do Sul, acrescentada e publicada na segunda edição, em 1901. Na Nota a “A Morte do Rei Humberto”, Gomes Leal afirma ter publicado antes de Fradique Mendes na Revolução de Setembro e assevera ter sido contactado por Antero de Quental para assinar textos daquele pseudónimo, o que recusou. Na referida Nota, menciona que Cesário Verde tece encómios à poesia de Claridades do Sul.

Gomes Leal estreou-se aos dezoito anos, em 1866, publicando a poesia “Aquela Morta”, na Gazeta de Portugal. Em 1869, publica o folhetim "Trevas" na Revolução de Setembro.

O cariz interventivo da sua obra é marcado não só pelos folhetins publicados nos jornais, mas também pela fundação do jornal satírico O Espectro Juvenal, em 1872, em parceria com Magalhães Lima, Silva Pinto, Luciano Cordeiro e Guilherme de Azevedo. É também um dos fundadores do jornal O Século (1881). Aí publica, por exemplo, “A banalidade nacional irritada” (30 de Janeiro de 1881).

Poeta joco-satírico, são deste autor vários textos que vieram a lume na Revolução de Setembro, dos quais destacamos “A batalha dos astros” (20 de Abril de 1870); “Descrença” (31 de Agosto de 1870); “Flor de perdição” (2 de Outubro de 1870); “No Calvário” (Outubro de 1870). Em 1873, publica “O Tributo de Sangue” e “A Canalha”. Em 1874, um ano antes da primeira edição de Claridades do Sul, escreve para o Diário de Notícias (19 de Maio) “Duas palavras sobre a poesia moderna”, onde reflecte sobre a utilidade que a poesia deve ter face às atribulações morais do final do século.

Claridades do Sul

Em 1875 sai a primeira edição de Claridades do Sul, cuja segunda edição é de 1901. Para celebrar Camões e Bocage, publica “A Fome de Camões” (1880) e “A Morte de Bocage” (1881). Datam igualmente de 1881 os panfletos poéticos “A Traição” e “O Herege”, pondo em causa o trono na pessoa do rei D. Luís, as Instituições burguesas e a Igreja, o que gerou um verdadeiro escândalo literário e político. Aliás, o primeiro texto leva-o à prisão do Limoeiro, onde escreve uma carta publicada no número comemorativo da Tomada da Bastilha de O Século (14/7/1881). A edição do almanaque O António Maria de 7 de Julho de 1881 é dedicada por Bordalo Pinheiro a Gomes Leal.

Outros poemas da sua autoria são “O Renegado” (1881), "A Orgia" (1882), “História de Jesus para as criancinhas lerem” (1883), “O Anti-Cristo” (1884 e 1886), “Fim de Um Mundo” (1899), “Serenadas de Hilário no Céu” (1900), “A Mulher de Luto” (1902), "Mefistófeles em Lisboa" (1907) “A Senhora da Melancolia” (1910). Publica até tarde. Data de Março de 1915 o poema “A Dama Branca” que vem a lume na Águia.

Na sua obra poética e panfletária, este poeta finissecular manifesta apego a entidades históricas e religiosas, numa atitude por vezes pessimista e acusadora. Todavia, é através desse apelo à História que procura um sentido para a vida. Este tipo de poesia enquadra-se na estética parnasiana cujas preocupações, além das de ordem formal e plástica, se inscrevem na procura da pureza original dos tempos, da História. Como exemplo, surgem as poesias de Claridades do Sul “Os Santos”; “D. Quixote”; “O Publicano”; “A Lira de Nero”; “Caim”; “A Lenda das Rosas”; “O Triste Monge” e “A Senhora de Brabante”. Ainda em Claridades do Sul, muitos dos seus poemas reflectem sentimentos de desalento e aflição relacionados com a temática da miséria e da pobreza, num tom neo-romântico do poema “As Aldeias”, “Misticismo Humano” e “De Noite”; outros reflectem sobre a imagética feminina romântica, como em “Romantismo”; “Idílio Triste” e “Senhora dos olhos verdes”.

Por outro lado, a dimensão decadentista-simbolista dessa obra de Gomes Leal leva a que se considere este poeta como o “verdadeiro precursor do Decadentismo em Portugal”, nas palavras de Seabra Pereira. “Licantropia” e “Aquela Orgia” são dois poemas que se inscrevem nessa tendência marcadamente simbolista que assumem algumas composições deste autor.

A filiação de Gomes Leal em Baudelaire é um dos tópicos mais tratados, porque o poeta português se inspirou no mestre das correspondências. De facto, Gomes Leal trabalha com mestria a ideia das “correspondances” do romântico francês nos quatro sonetos de Claridades do Sul intitulados “O Visionário ou Som e Cor”.

A perspectiva do poeta enquanto ser incompreendido e infeliz surge em vários textos de Gomes Leal, composições poéticas em que o sujeito lírico se assume como alguém singularmente distante do comum dos mortais. Não se distanciando da visão romântica do poeta, Gomes Leal define-se como um génio inadaptado à sociedade, num misticismo visionário. Inúmeros são os exemplos desta perspectiva do “poeta proscrito e infeliz”, como “Soneto dum poeta morto”, “Aquele Sábio”, “El Desdichado” e “Noites de Chuva” de Claridades do Sul.

Outra característica deste poeta finissecular prende-se com a preocupação que manifesta em relação aos seus leitores, nomeadamente na Nota à primeira edição e acrescentada na segunda edição de Claridades do Sul (1901). Aí debruça-se sobre a tarefa do escritor explicitando que a este compete “trabalhar a sua ideia, lapidá-la, poli-la, desenvolvê-la, facetá-la, de maneira que ela seja como um grande elo em que se vão encatenar um rosário luminoso doutras novas, e que ela saia transformada desse vasto laboratório intelectual, por um processo misterioso semelhante ao que dá a Natureza, transformando da lagarta a borboleta, do carvão o diamante, e da ostra doente a pérola.”

Na poesia de Gomes Leal confluem o Ultra-Romantismo, o satanismo byroniano, as correspondências baudeleirianas, o Parnasianismo e o Simbolismo. Há ainda alguns elementos que deixam já adivinhar o Surrealismo.

Respondendo ao Inquérito Literário organizado por Boavida Portugal (realizado entre Setembro e Dezembro de 1912 e publicado em 1915), Gomes Leal afirma: “Em mim há três coisas: o poeta popular e de combate, nas sátiras e panfletos; o poeta do sonho e do mistério, na Nevrose Nocturna, nas Claridades do Sul, na Lua morta e na Mulher de Luto; e o poeta místico, na História de Jesus, na Senhora da Melancolia e no segundo Anti-Cristo.”

No número 2 da ABC – Revista portuguesa (22 de Julho de 1920), sob o título “O grande poeta Gomes Leal faz a sua biografia ao A B C, publica o soneto autobiográfico”, que transcrevemos, antecedido do seguinte texto:

Gomes Leal, o poeta ilustre, que é uma glória nacional, quis dar ao A B C uma impressão da sua vida, da sua acção, das suas lutas. Em vez duma entrevista foram aos seus versos lapidares que chegaram a explicar como se passou uma infância, uma velhice e como a velhice chegou com as suas dores a focar essa cabeça coroada de louros. Só Gomes Leal poderia definir o que A B C desejava saber: a vida do primeiro poeta português.

Outr’ora, outr’ora, em épocas passadas,
Tive uma santa Mãe de ideias maneiras,
Um recto Pai de barbas prateadas,
Tive prédios, jardins, fontes, roseiras.

Nos colégios, nas aulas, nas bancadas,
Não quebrei bancos, não parti carteiras;
Fiz bons exames, contas, taboadas,
Mais tarde amei patrícias feiticeiras.

Fui amigo do Eça e do Ramalho,
João de Deus, mais do excêntrico Fialho,
E tive que emigrar para o estrangeiro.

Chorei, gemi! Qual Dante nas estradas!
E ao regressar, por causas avanças,
- fui por três vezes parar ao Limoeiro.




Bibliografia sumária

Activa:

Foram publicadas em 2000 pela Assírio & Alvim, com edição de José Carlos Seabra Pereira, as seguintes obras, até à data esgotadas ou de difícil acesso:

A Fome de Camões e Outros Destinos Poéticos

A Mulher de Luto – Processo Ruidoso e Singular

Claridades do Sul

Fim de um Mundo – Sátiras Modernas

História de Jesus (Para as Criancinhas Lerem)

Mefistófeles em Lisboa e Outros Humorismos Poéticos

O Anti-Cristo – Primeira Parte – Cristo é o Mal

O Anti-Cristo – Segunda Parte – As Teses Selvagens


Passiva:

Álvaro Manuel Machado, “Gomes Leal, Baudelaire e o Pós-Romantismo Finissecular”, in Intercâmbio, publicação anual do Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto, 1992

Álvaro Manuel Machado, Poesia Romântica Portuguesa, Lisboa, ICALP, 1982

Francisco da Cunha Leão e Alexandre O’Neill, Gomes Leal, Antologia Poética, Lisboa, Guimarães editores, 1959

Gomes Monteiro, O Drama de Gomes Leal. Com inéditos do poeta, Lisboa, editora Minerva, s/d

José Carlos Seabra Pereira, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românticos, 1975

Ladislau Batalha, Gomes leal na Intimidade, Lisboa, Lisboa Peninsular editora, 1933

Vitorino Nemésio, Destino de Gomes Leal, Lisboa, Bertrand, s/d

Adolfo Coelho
Alexandre Herculano
Almeida Garrett
Antero de Quental
António Nobre
Basílio Teles
Eça de Queirós
Gomes Leal
Jaime Batalha Reis
Lopes de Mendonça
Moniz Barreto
Oliveira Martins
Pinheiro Chagas
Rafael Bordalo Pinheiro
Rebello da Silva
Teófilo Braga
Abel Salazar
Adérito Sedas Nunes
Adolfo Casais Monteiro
Agostinho da Silva
Alexandre O'Neill
António Gedeão
Aquilino Ribeiro
Augusto Abelaira
Bento de Jesus Caraça
Bernardo Marques
Borges de Macedo
Carlos Ramos
David Mourão-Ferreira
Eugénio de Andrade
Fernando Gil
Fernando Lopes-Graça
Fernando Pessoa
Fidelino de Figueiredo
Florbela Espanca
Guilhermina Suggia
Helena Vaz da Silva
Hernâni Cidade
Irene Lisboa
Jacinto do Prado Coelho
Jaime Cortesão
João Gaspar Simões
Joaquim de Carvalho
Jorge de Sena
Jorge Peixinho
José Augusto Seabra
José Cardoso Pires
José Gomes Ferreira
José Rodrigues Miguéis
Leonardo Coimbra
Lindley Cintra
Luís Albuquerque
Luís de Freitas Branco
Manuel Antunes
Manuel Viegas Guerreiro
Maria Archer
Maria de Lourdes Belchior
Maria Lamas
Mário Botas
Mário Eloy
Mário Sottomayor Cardia
Miguel Torga
Orlando Ribeiro
Paulo Quintela
Raul Brandão
Raul Proença
Sílvio Lima
Sophia de Mello Breyner Andresen
Teixeira de Pascoaes
Vergílio Ferreira
Viana da Mota
Vieira da Silva
Vieira de Almeida
Vitorino Magalhães Godinho

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