Joaquim de Carvalho representa na cultura portuguesa contemporânea uma das primeiras figuras do século XX a optar pela especialização universitária enquanto modo de intervenção no espaço público. Apesar de a maior parte do seu trabalho, e da sua vida, ter decorrido na primeira metade do século, a sua Obra é bem representativa de uma transição crucial ocorrida em meados do século, sobretudo entre meados dos anos 1940 e meados da década de 1960, a especialização do discurso crítico que, no seu caso, foi feita pela história da filosofia.
Formado na Universidade de Coimbra, primeiro em Direito (1914), depois em Filosofia (1915), começou a sua carreira universitária como assistente em Filosofia (1916) e doutorou-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Coimbra em 1917, com uma dissertação sobre António de Gouveia. Rapidamente se destacou e sem surpresa sabemos da sua oposição pública ao projecto de Leonardo Coimbra, então ministro da Educação (estava-se em 1919) de mudar a Faculdade de letras da Universidade de Coimbra para a Universidade do porto, com o pretexto de assim desenclausurar um saber superior a bem da então jovem República. Joaquim de Carvalho, liberal e maçónico, foi um de muitos a contrariar esta ideia e, como sempre fez na sua vida, opôs-se a interferências religiosas e políticas na vida académica. Nesse mesmo ano, aliás, contribuiu para o projecto da Universidade Livre de Coimbra, instituição de um novo tipo que à altura se procurava implantar por todo o país com o fito de difundir saber sem cauções políticas e religiosas. Mas a sua fidelidade esteve sempre com a Universidade e Coimbra, onde foi catedrático de História da Filosofia desde 1919 até à sua morte, e na qual Joaquim de Carvalho deixou um legado ainda hoje inigualado.
Pouco depois tem início o período de maior actividade de Joaquim de Carvalho na Imprensa, quer a nível editorial quer como colaborador de revistas influentes. Entre estas, destaque para a Seara Nova, com a qual colaborou embora não seja possível qualificá-lo como seareiro, tendo sido particularmente activo na década entre 1926 e 1936. Esta actividade pública trouxe-lhe vários dissabores, quer com os mais novos (por exemplo numa polémica no final da década de 1920 com José Régio, a respeito do carácter da revista presença, que Joaquim de Carvalho descreveu como sendo destrutivo) quer com o regime instalado em 1926. Com efeito, na sua concepção de democracia, esta era inseparável de liberalismo (o que lhe foi contestado por alguns autores relevantes, como Domingos Monteiro) e a sua defesa destes ideais, bem como a sua ligação à Maçonaria, não deixaram de ser penalizados pelo Estado Novo.
Como já referimos, a sua actividade pública teve também como palco de grande notoriedade a administração da Imprensa da Universidade de Coimbra entre 1921 e 1935. Esta actividade só cessou por ordem directa do governo, isto é, de Oliveira Salazar, seu colega de cátedra coimbrã, quando, no mesmo ano em que fez a primeira grande perseguição aos universitários e outros professores não alinhas com o regime, ordenou o encerramento da editora cuja actividade era reconhecida inclusivamente por aqueles que se encontravam nos antípodas políticos de Joaquim de Carvalho (Alfredo Pimenta escreveu-o então). À frente da editora apoiou (encomendando traduções) António Sérgio no exílio deste em Paris, publicou jovens autores como Adolfo Casais Monteiro (Considerações Pessoais, 1933) e exercera sempre a sua actividade com a mesma independência que reclamava para a sua Universidade. Essa purga, que afastou entre muitos outros um dos seus assistentes (Sílvio Lima), marcou um momento de viragem na sua actividade, no sentido de maior isolamento e fechamento no trabalho intelectual. Se que isso, contudo, o fizesse deixar de se referir a Salazar nos termos mais críticos, que estendia ao apoio que a Igreja dava ao Estado Novo, ressentido e frustrado seminarista que nunca deixou de o ser, chefe do nacional-seminarismo. Mas o mal estava feito e apesar de, coisa incomum em Portugal, imediatamente se ter feito sentir a solidariedade de todos, o panorama não se alteraria ater à sua morte. Registe-se no entanto o volume de homenagem, a si e a Hernâni Cidade e Azevedo Gomes, publicado em 1935, com textos de, entre outros, Rodrigues Lapa, Flausino Torres e Vitorino Nemésio (v. referências). Depois disso, mesmo dinamizando publicações universitárias de Filosofia, Joaquim de Carvalho não voltou a ter a preponderância pública que tivera até finais da década de 1930.
Da sua vasta Obra destaque para os estudos sobre figuras da cultura portuguesa, com grande destaque para a literatura. Apesar de não ser essa a sua área de formação, o neokantismo que o animara na juventude marcou-o com um interesse permanente pelos métodos de pesquisa e hermenêutica raro em Portugal, reconhecendo sempre a especificidade da estética mesmo quando a enquadrava e contextualizava (faceta constante dos seus textos, sempre muito pedagógicos). Apesar de algumas dessas abordagens se encontrarem hoje integradas no sistema de ensino (a sua análise fenomenológica da saudade foi integrada nas leituras dos estudantes de Filosofia do ensino secundário), a sua originalidade mantém-se, pois apesar de algo datados, o trabalho posto nos seus textos salva-os do esquecimento. Para melhor se compreender a extensão do seu labor, fica o registo temático dos nove volumes da sua Obra Completa: volumes I e II, Filosofia e História da Filosofia; volumes III e IV, História da Cultura; V, História e Crítica Literárias e História da Ciência; VI, História das Instituições e pensamento politico; VII, Escritos sobre a Universidade de Coimbra; VIII, Ensaio e Fragmentos filosóficos e bibliográficos; IX, índices. Para abarcar toda esta diversidade, consulte-se o estudo introdutório do organizador, J. V. Pina Martins.